terça-feira, 19 de março de 2024

Diário do absurdo e aleatório 107 - Emanuel Lomelino

Não preciso molhar-me na fúria desta chuva madrugadora para conseguir dissertar sobre a impermeabilidade que me escasseia.

Cada gota que desliza da nebulosidade do céu negro para abater-se sobre mim, com a ferocidade tropical de todas as tempestades, apenas cumpre o seu destino - e o meu.

Gotícula a gotícula, de mãos dadas com a liquidez desconfortável, transformo-me num leito de rio cujas correntezas percorrem de nascente à foz, sem resistência de dique ou barragem.

Inundo-me desde as margens até ao âmago em cascatas incessantes de rebeldia, qual desfiladeiro íngreme com protuberâncias escorregadias.

No centro do dilúvio, sou como um navio sem leme nem rumo, e o vento – irregular como só ele – não me permite mais do que andar, trémulo, à deriva.

Depois, como uma criança inocente, mas travessa, o céu afasta as nuvens e sorri um arco-íris, sem remorso por ter lançado toneladas de água sobre este pobre coitado que apenas saiu à rua para ir trabalhar, num sábado, e agora vai gastar os ganhos de um dia em paracetamol.

segunda-feira, 18 de março de 2024

Diário do absurdo e aleatório 106 - Emanuel Lomelino

Quem me lê sabe que faço muitos exercícios de escrita. Através deles consigo aperfeiçoar a minha técnica, por vezes deficitária.

Invento desafios para descobrir a melhor abordagem para cada tema. Também uso estes artifícios como forma de testar o vocabulário. Não existe nada mais nefasto numa frase que palavras repetidas. E o mesmo pode ser aplicado a um texto curto. Por essa razão é importante estudar as diversas opções disponíveis. Às vezes aplicar um bom sinónimo pode enriquecer uma ideia. E quem diz sinónimos pode dizer antónimos, adjectivos, substantivos, advérbios.

Sei, por experiência própria, que exercitar a escrita é útil. Quem o faz ganha fluidez de discurso e espontaneidade criativa. Com o treino, o cérebro reage com rapidez e prontidão. Como diz o velho adágio: a prática faz o mestre.

Não sou de aconselhar, mas posso partilhar a minha experiência. E como sempre, uso este exercício para comprovar a teoria.

Decidi escrever sobre esta temática da forma mais ligeira possível. Creio que consegui emprestar coerência e ritmo a este texto. As frases são curtas, mas de entendimento fácil e escorreito. Foram criadas e desenvolvidas para surpreender cada um dos leitores. Pelo menos aqueles com disposição para analisar todas as frases. É que, todas elas, foram construídas, propositadamente, com dez palavras.

Diário do absurdo e aleatório 105 - Emanuel Lomelino

Mais do que direito adquirido, escrever é um dever que poucos assumem. Uns por preguiça, outros por ignorância. A maioria recusa a responsabilidade, a minoria acredita que a escrita deve cingir-se aos pensadores, filósofos, doutrinados e eruditos. Boa parte escreve apenas porque sim, a outra parte, espartilhada entre crenças e rivalidades, contesta tudo o que se escreve, qual oposição sem programa alternativo.

Escrever é a liberdade do pensamento, mas alguns “seres iluminados” advogam que a escrita só o é se for feita de acordo com os novos cânones e, por consequência, com a negação dos anteriores. Exigem que se eliminem todos os conceitos, regras e definições do passado, que acreditam ser agrilhoadores da criatividade, e impõem a permissividade restrita dos seus valores literários. Estes sábios da contemporaneidade, quais profetas da verdade absoluta, pensam a escrita de acordo com as fraquezas das suas próprias limitações. Estes censores da modernice, quais escravos das tendências anti autoridade, querem que a escrita se resuma à incoerência das suas crendices anti regras.

Aos arautos dos paradigmas elitistas, eu digo: Mentis! A arte é democrática! Não tem cor, sexo, idade, cultura, religião, política padrão, nem corrente estética ou estilística.

Aos negacionistas do legado que todos carregamos, eu digo: Mentis! A arte de hoje só existe, como é e se molda, porque o passado é o somatório de todas as correntes que nos conduziram até aqui.

Aos génios do desgoverno, eu digo: Mentis! A arte sempre terá regras, mesmo que não sigamos as normas clássicas ou doutrinas pré-existentes, porque até o vosso anarquismo é, por si só, uma regra que vos exige serem contra todas as outras regras.

Diário do absurdo e aleatório 104 - Emanuel Lomelino

No outro dia ouvi alguém dizer que a matemática não é uma ciência, mas sim uma ferramenta ao serviço de várias ciências. Pensei no assunto e consegui ver a lógica desse raciocínio.

O problema é que não fiquei por essa simples reflexão e continuei a pensar nos conceitos dogmáticos que esta disciplina encerra e cheguei a outra conclusão. Ao contrário do que me ensinaram, a matemática é tudo menos exacta.

Vejamos.

Eu sou um (número inteiro), no entanto, na maioria das vezes sou apenas fracções de mim, raramente completo. Assim sendo, como posso ser, em simultâneo, um e decimal de mim?

Atentando mais fundo na questão, tendo sempre presente que sou um, como se explica, matematicamente, aquilo que sou quando me divido (ou multiplico) ao longo de um dia de trabalho? O mesmo poderia perguntar pelas vezes que me somo ou subtraio.

Ao detectar estas incongruências, a confusão adensou-se porque fiquei a saber que sou um zero nesta matéria. Mas como? Se zero não é número inteiro e, à partida, sou um? Será que um pode ser todas essas coisas, inclusive algarismo aditivo ou fracção? Pode o um ser um número nulo?

Se houver por aí um matemático de serviço, agradeço desde já que não me esclareça estas dúvidas porque a febre já passou.

Diário do absurdo e aleatório 103 - Emanuel Lomelino

Imagem cambly

Há um aqueduto de frases por escrever entre as areias do Hudson e as praias vicentinas.

Os verbos correm ferventes desde as encostas do Corno dos Romanos até à mais recôndita ilhota do Pacífico.

Os adjectivos viajam desde as grutas que nunca foram de Salomão até às cidades perdidas na tropical Amazónia.

Cada substantivo percorre as planícies subsarianas rumo aos planaltos Tártaros.

Existem estepes de versos inovadores, entre as tundras escandinavas e os pomares nipónicos, com ânsia de nascerem virados para as águas santas do Ganges, mas idolatrando as correntes de Yangtzé. 

Há complementos empalados nas calotas polares, em ambos os hemisférios, só a aguardar o degelo para irem em busca de Everestes sujeitos e predicados.

Existem virgulas a bolinar ventos alísios (algumas de pontos às costas), com o mesmo ímpeto que as reticências cavalgam as dunas do Saara, em busca de dois pontos, parágrafos e travessões.

As ondas do Índico são tiles disfarçados, por não quererem ser vistos na companhia dos apreensivos circunflexos. Assim como os graves só querem ver os agudos pelas costas.

As interrogações não são mais do que exclamações vergadas ao peso de múltiplas dúvidas sugeridas pelas irrequietas marés lunares.

E assim se juntam dois mundos numa chuva descritiva cheia de figuras de estilo e com o epílogo esperado (ponto final).