segunda-feira, 15 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 269 - Emanuel Lomelino

Pulquéria acordou com um cadeado de remelas a prender-lhe as pálpebras e uma bigorna pousada na cabeça. Proferiu dois jargões cabeludos que lhe feriram os tímpanos como se os sinos de Notredame estivessem hospedados nos seus ouvidos. Rangeu os dentes, que lhe pareceram poluídos de poeira, e repetiu os impropérios, desta vez só em pensamento para que as badaladas não se repetissem.

Todo o corpo alertava para um forte aumento da força gravitacional que a prendia ao seu leito, onde nunca tinha sentido tamanho desconforto. Tentou mover-se em vão. Só os dedos respondiam aos comandos do seu cérebro descompensado. Por mais que tentasse, não conseguia alcançar a lucidez de raciocínio que a ajudasse a compreender as razões para uma revolta corporal tão intensa. Essa circunstância só aumentava a opressão que sentia no peito, quase no limite do necessário para a existência de respiração – uma espécie de claustrofobia (algo de que nunca padecera).

Para agravar a ansiedade, havia um silêncio absurdo que só era quebrado por uma goteira longínqua e um expressivo cansaço que a puxava, invariavelmente, para sonos picotados, dos quais despertava com a sensação de ter escutado uma voz murmurar: - Está aí alguém?

Na dúvida, entre estar presa num sonho mau ou a perder a sanidade, Pulquéria respondeu: - Estou aqui! – O esforço despendido empurrou-a, mais uma vez, para um sono forçado.

Quando voltou a despertar, tinha um pano húmido sobre o rosto e sentiu que o seu corpo flutuava aos solavancos. Gemeu e ouviu uma voz masculina, firme mas tranquilizadora: - Está tudo bem!

Ainda não sabia, mas tinha sido a única sobrevivente da derrocada da residencial, onde estava hospedada desde o início da semana. Que rica maneira de começar as férias.

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