Serôdio
semicerrou as pálpebras numa vã tentativa de enxergar os dois vultos
embaciados, que passavam diante de si.
-
Tens de ir ao oftalmologista! – aconselhou Beatriz pela milésima vez.
-
Um dia destes…
-
Respondes sempre isso, mas o dia nunca chega.
-
Ando com o tempo ocupado.
-
Pois. – disse Beatriz num suspiro de enfado. – Quando cegares de vez, quero ver
como vais ocupar o tempo. – sentenciou.
Serôdio
sentiu todo o impacto das palavras proferidas pela esposa, mas não retorquiu.
Sabia que a preocupação dela era legítima e verdadeira. Nos últimos meses os
seus olhos revelavam a extensão do cansaço provocado por anos e anos de esforço
a que tinham sido sujeitos. O óculo de relojoeiro ainda conseguia disfarçar a
deterioração das duas vistas, mas ler os jornais diariamente, aquilo que mais
gostava de fazer quando não estava a arranjar os mecanismos dos relógios,
passou a ser uma tarefa árdua. As letras encavalitavam-se umas nas outras e,
pouco a pouco, perante as dores que sentia para tentar decifrar o corpo das
notícias, Serôdio começou a ler somente os títulos, e depois apenas as letras
garrafais das capas. Mas o pior de tudo era quando queria ajudar Beatriz na
cozinha. Os olhos já não ajudavam a identificar os frascos dos temperos e,
acaso ela não estivesse atenta (às vezes acontecia), lá tinham de comer salada
temperada com pimenta branca em vez de sal, ou sopa com vinagre em vez de
azeite. Pelo menos por ela, a sua companheira de uma vida, ele tinha de
arranjar tempo.
- Não passa de amanhã! – disse ele agarrando a mão de Beatriz.
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