quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

Diário do absurdo e aleatório 13 - Emanuel Lomelino

Nasce-se para se morrer, independentemente daquilo que se fizer no intervalo.

Já nasci e morri tantas vezes que a cronologia natural desses feitos deixou de fazer sentido.

Todas as mortes foram diferentes, enquanto os nascimentos foram tremendamente dolorosos para mim, com excepção do primeiro, cujas dores nem recordo.

Nasci e morri de tantas formas distintas que, em algumas delas, senti-me um personagem de Lovecraft.

Foram tantos os partos que nem deu tempo para fazer certidões de nascimento, porque as mortes estavam ao virar da esquina.

Foram tantos os óbitos que nem a necrologia conseguiu acompanhar e ninguém foi notificado.

Morri e renasci tantas vezes que já nem gato sou.

Com tantas parições e falecimentos foi-me permitido confirmar que, por mais que se faça tudo certinho em cada vida, de múltiplas e diferentes formas possíveis, nunca seremos capazes de impedir o desfecho final. E essa circunstância implica que no final das contas, o número de nascimentos será sempre igual ao de mortes.

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Diário do absurdo e aleatório 12 - Emanuel Lomelino

É preciso abrir os olhos, para lá dos limites da fisionomia, para avistarmos tudo aquilo que, pintado com as cores da nossa inocência, nada mais é que engodo e simulação.

É preciso ver além do alcance da vista para entendermos como estes espectros furtivos, que nos iludem na invisibilidade das intensões, são seres de carácter pérfido, dissimulado, vil.

É preciso atenção microscópica e redobrada para entendermos quão elásticas (como interesseiras) são as aproximações que nos fazem, dependendo da utilidade, ou falta dela, que nos outorgam.

É preciso dar uso a toda a prudência, que a natureza nos emprestou, para sabermos quando sugam o ar que nos mantém ou sopram o veneno que nos intoxica, como insecticida.

É preciso reparar que, quase sempre, os benefícios de um ombro, que vislumbramos como gesto puro e sincero, são maças armadilhadas de gentileza encantatória e enganadora.

É preciso enxergar para lá do horizonte mais próximo e observar a distância mais remota para vermos com clareza o quão camufladas são as pretensões daqueles que, com vozes sussurradas, nos entoam aos ouvidos cantos de sereia.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

Diário do absurdo e aleatório 11 - Emanuel Lomelino

O ar não é respirado em uníssono e as palavras deixaram de ser comuns. Contudo, mesmo que os olhos pouco, ou nada, se cruzem ainda temos os corações que batem do mesmo jeito – arfantes, porque arrítmicos.

Os gestos não são sincronizados e os passos são dados em direcções opostas. No entanto, mesmo com as esperanças reduzidas a novas realidades, ainda temos o sentimento vivo – pulsante, porque presente.

As vontades não são conjuntas e os objectivos distanciaram-se no espaço. Todavia, mesmo com os sorrisos pálidos e tristes, ainda existe forte conexão – elo, porque une.

Os abraços são esporádicos e os beijos são doces memórias de outrora. Porém, mesmo sabendo que, tal como dizia Mia Couto, com outras palavras, “nos acendemos uns nos outros”, ainda ardem em nós as labaredas – fogo, porque ardente.

As mãos não estão entrelaçadas e as vidas voltaram a ser independentes. Apesar disso, mesmo sabendo que o futuro passou a ser dois, ainda temos a história que será sempre nossa – eterna, porque imortal.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Diário do absurdo e aleatório 10 - Emanuel Lomelino

Quando os pensamentos querem ser vistos transfiro-os para um suporte e visto-os de palavras. Essas dão os braços, umas às outras, como numa roda de dança, e fluem a seu belo prazer sem a minha intervenção.

No início, na inocência do meu desconhecimento, mal se expunham, tentava dar-lhes um sentido mais legível, mas esse processo acabava, inevitavelmente, por lhes cortar o fluxo e, o que era uma ideia sólida, diluía-se no tempo com a busca da alternativa de discurso e perdia a força da mensagem base.

Com o tempo, e a experiência, aprendi a ser paciente e comecei a esperar o fim da transição para depois, então, fazer as alterações necessárias.

É por isso que, mais do que escrever, gosto da transpiração de limar verbos, raspar pontuação, desbastar complementos, cinzelar advérbios, polir sentenças.

E se me perguntarem a razão deste trabalho eu respondo que o meu cérebro é disléxico e tem sempre muita dificuldade em estar sincronizado com os pensamentos que lê.

domingo, 25 de fevereiro de 2024

Diário do absurdo e aleatório 9 - Emanuel Lomelino

Não existe falácia na ânsia causada por um silêncio violado pela maliciosa verve, intencionalmente impostora, que fere de garras afiadas os órgãos mais frágeis, como lâmina aquecida a perfurar matéria inflamável.

Não há remorso nas labaredas que beijam os sentidos na esperança de postular uma cauterização lenta até ao cessar dos dias, como a queda num precipício infindo.

Ninguém percebe a vontade intrínseca do sal líquido derramado como consequência do fétido ardor que um verbo pode causar quando penetra o interior imaculado – como floresta virgem - isento de mágoas e nódoas.

Ninguém entende a extensão dos danos perpetrados pela radioatividade das palavras ácidas, propositadamente regurgitadas como cuspidela traiçoeira de um réptil mal-intencionado.

Ninguém compreende o desgosto de um tímpano ferido de inverdades. Há um mórbido desejo de surdez permanente, que é herético, mas apetecido como água fresca em dia desértico.

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Diário do absurdo e aleatório 8 - Emanuel Lomelino

Quando os vidros e espelhos se transformam em estilhaços espalhados de modo arbitral no solo roído pelos passos de outrora, não estão sós e isolados. Ficam na companhia da caliça que já foi reboco; de alguns tufos de pelos com proveniência incerta; de heras que se atreveram a romper o betão para despontar entre as frestas de um chão que já foi imaculado; de pedaços de mosaicos quebradiços que a passagem do tempo libertou; de fragmentos de papel retalhado e amarelado pelo mofo; de poeira bafienta originária de múltiplas fontes; de lascas de madeira caídas de armários descoloridos e empenados, cujas portas estão seguras por uma única dobradiça enferrujada; de uma poça de água choca que, volta e meia, é alimentada pela goteira que o telhado esburacado deixou formar, e por onde entram aves para o descanso nocturno ou para se protegerem.

Todo este entulho de ruína e caos é cúmulo de memórias descartáveis que alguém – que pode ser plural – deixou para trás como estivesse a abandonar o mais irrelevante de si.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Diário do absurdo e aleatório 7 - Emanuel Lomelino

Há uma fragrância almiscarada a perturbar as pálpebras húmidas de desencanto. Um doce odor de verde-feiticeiro que se prolonga no horizonte oculto, como a magia da claridade diurna de um dia pardacento.

Há um suave perfume de velhas orquídeas, pálidas e plácidas como hidromel requentado. Uma essência sem músculo, mas dotada de força e energia retumbante, que prende, como grilhetas enferrujadas, os sentidos desprevenidos e insonsos.

Há um aroma maduro de intensidade que se espalha na morna brisa de um verão escondido. Um bálsamo tão hipnótico como soporífero, que impregna de dúvidas a mente mais avisada – tal qual um narcótico amanhecer.

Há uma preguiçosa emanação furtiva que impede as vistas curtas e cansadas de alcançarem o mínimo vislumbre perene de uma miopia desacordada, como quem se omite, conscientemente, das funções mais mundanas – porque despreparados são os ofícios da inocência.

Há, no ar, uma pestilência omnipresente, com requintes sombrios e inoportunos, que toldam a razão sem remorso pelos danos causados, como se a visão de um espírito peregrino não conseguisse, por si só, vaguear entre curtumes e incertezas, na desafiante estrada que redemoinha a cada novo despertar.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Diário do absurdo e aleatório 6 - Emanuel Lomelino

O ritmo, a cadência, a duração dos fragmentos de tempo é igual para todos, sem excepção. Ninguém vive segundos, minutos, horas, dias, semanas com maior duração do que os outros. A diferença está na forma como cada um usa o tempo; no modo como o gasta; na utilidade que lhe dá; no desaproveitamento que lhe faz.

O tempo é um só. Tão regular e contínuo, quanto obstinado e persistente na constância. O tempo é obsessivo, dono do seu nariz, pouco lhe importando a forma, o modo ou o jeito como o preenchem.

A génese das queixas sobre o tempo está no grau de prioridade que cada um, em toda a sua vitimização, dá ao tempo que lhe cabe. Por isso existem os desleixados e os organizados; os irrequietos e os cómodos; os espalhafatosos e os discretos; os inteligentes e os chico-espertos; enfim, aqueles para quem falta tempo e os outros que têm tempo de sobra. Apesar do tempo ser sempre o mesmo.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Diário do absurdo e aleatório 5 - Emanuel Lomelino

O céu azul, o sol a pique e a vontade de, como o António, “estar bem onde não estou”, porque os desejos são como as miragens provocadas pelas ondas de calor – aquele bailado ondulante, no negro asfalto, que hipnotiza, mas sufoca.

Consigo refrescar a garganta seca de outras paragens, no entanto, o espírito mantém-se ressequido e ressentido pelo momento – penoso instante que se prolonga na esfera do desespero, tal qual dunas de um qualquer deserto.

A água simplesmente humedece os lábios gretados e trémulos, enquanto as rédeas do pensamento não deixam que os olhos se desembaracem da linha do horizonte desejado e distante.

Confrontado com a inevitabilidade palpável e real – antagonista da sentença do António – encolho os ombros e aceito, mais uma vez, a fatalidade de estar mal onde não quero estar, mas estou.

Que ninguém se compadeça.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Diário do absurdo e aleatório 4 - Emanuel Lomelino

Erradamente, supôs-se que a vida seria uma simples equação matemática. Mas alguém, fraco no domínio da álgebra e apenas conhecedor dos números inteiros, enganou-se nos cálculos por não contemplar décimas, fracções, ou raízes quadradas.

Supostamente, a vida deveria ser um segmento de recta. Todos a partirem de um ponto A para chegarem, linearmente, a um ponto B. Mas alguém, fraco em geometria, olvidou a existência de círculos, triângulos, quadrados, etc. Tampouco conhecia ângulos, senos, cossenos, tangentes, catetos e hipotenusas.

Na verdade, de nada nos serve sabermos fazer cálculos avançados ou trigonométricos porque a complexidade da vida ultrapassa todas as ciências.

Para facilitar as coisas, pensemos na vida como uma enorme espiral irregular que contradiz todas as teorias conhecidas.

As contas nunca batem certas, os ângulos estão sempre errados, e as figuras geométricas têm formas difíceis de entender ou identificar.

Bem vistas as coisas, só o ponto de partida A e o ponto de chegada B são os elementos reais da equação da vida, tudo o resto são incógnitas disformes.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Diário do absurdo e aleatório 3 - Emanuel Lomelino

O tempo passa no seu ritmo célere e eu sei que não consegui dar todos os passos que devia. Por vezes ponho-me a pensar se não ocupei mal o tempo que me foi concedido. Acredito ter deixado passar algum sem lhe ter dado o devido uso. Tempo perdido e mal aproveitado.

Os dias sucedem-se a galope do tempo e eu deixo-me ficar apeado sem saber o que fazer, o que dizer, o que realizar, mantenho-me quieto no meu canto sem perceber que estou a perder o meu tempo.

Mesmo não sendo saudosista acontece-me em muitos momentos desejar que o tempo recue e me dê uma nova oportunidade de fazer algumas coisas que deixei de fazer por falta de tempo ou por não ter sabido aproveitá-lo.

E penso no tempo que deixei escapar entre os dedos, em tudo o que devia ter feito e não fiz, no que deveria ter dito e não disse, no que poderia realizar e não realizei. E assim dou por mim a pensar no tempo que se foi e esgota sem perceber que ao pensar no tempo que perdi continuo a perder tempo que podia utilizar para fazer, dizer e realizar as coisas que não faço, não digo e não realizo por falta de tempo e por não o saber aproveitar.

O mesmo é dizer que pensar no tempo que perdi continua a ser uma perda de tempo.

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Diário do absurdo e aleatório 2 - Emanuel Lomelino

O dia voou-se-me pelos dedos com a fúria premeditada de lâminas rombas. As mãos choraram desconforto enquanto a alma – essa eterna chaga tresmalhada – regozijou-se por não ser corpórea e celebrou a sua indiferença ao beliscar do físico.

Os segundos latejaram-me na pele; os minutos picaram o ponto; as horas cauterizaram os sulcos, infamemente, enfaixados com gaze inexistente. E ela – a alma arredada de empatia – manteve-se fiel ao seu umbigo narcisista.

A tarde sucedeu à manhã, como é habitual nestas coisas do tempo, e a cada tique-taque da ampulheta moderna mais rugas decidiram enfeitar-me a derme irritada de poeira e sedenta de tréguas. Da outra – a alma desgarrada de afinidades – nem um sopro refrescante de interesse ou sinal de afectação.

Foi apenas mais um dia que passou. O corpo ganhou umas quantas medalhas por continuar a superar etapas, enquanto a alma – vilã de si mesma – permanece na ignorância de que nada, nem ninguém, é imune à passagem do tempo e que este também se lhe aplica.

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Diário do absurdo e aleatório 1 - Emanuel Lomelino

Os dias tecem-se como macramé. Entrelaçam-se os nós à velocidade dos ponteiros, e a estética nunca é ditada pelo tecelão, mas sempre pelos fios do tempo. Os minutos são franjas e as horas urdem-se de forma aleatória, porém harmoniosa.

Hoje teci um dia pardo, entre refeições. Quis Aracne – deusa do ofício –, de porte altivo, como todas as divindades devem apresentar-se, que o padrão das pausas, para descansar as mãos doridas de tantas agulhadas, fosse obtuso, contudo geométrico. E os desenhos de mais um dia ficaram-me tatuados na pele.

A minha sorte é ter esta obsessão redundante pela etimologia das palavras e descobrir que, ao contrário de todos os “dejá vu” deste dia, macramé não tem origem francesa, antes árabe “migramah”, ou talvez do turco (língua aliada) “miskrama”.

Seja como for, assim que a noite se predispuser a embalar-me as escaras, enrolar-me-ei na tecelagem deste dia e dormirei na certeza de que na próxima alvorada serei artesão de outra arte qualquer.