terça-feira, 16 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 275 - Emanuel Lomelino

A irregularidade das calçadas condiciona as passadas nos labirintos tricotados pelas sebes e árvores das praças e os bancos de madeira, envelhecida pelos dias, esperam com paciência os leitores de jardim e alimentadores de pombos.

Os pintassilgos sobrevoam a azáfama das formigas ao som do violinista que silencia as ociosas cigarras. Num ramo altivo, berço de densa folhagem alaranjada, dois olhos de esquilo perscrutam os canídeos que passeiam, pelas trelas, os donos hipnotizados pelos pixéis dos ecrãs iluminados.

Nas águas barrentas, dois cisnes flutuam a atenção na família de patolas que se refugiou no centro do lago, fora de alcance do atrevimento de um infante trôpego, incentivado pelos risos histéricos e babados dos progenitores.

E tudo isto é embrulhado por ciclistas, trotineteiros e patinadoras, de calções curtos e justos, que não querem destoar do equilíbrio da paisagem nem diferenciar-se dos caminhantes e corredores de circunstância.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 274 - Emanuel Lomelino

Quando o génio entra de férias, supostamente vitalícias, e as incertezas perdem terreno para a indiferença, eis que as adversidades mexem os cordelinhos e encontram sempre uma solução para se fazerem sentir, em todo o fulgor da sua inconveniência ácida.

Quando os caminhos ficam leves e consegue-se percorrê-los em ponto-morto, sem necessidade de gastos extra em esforço e desconforto, e as nuvens parecem querer revelar o brilho azul do céu diurno, eis que o fado arranja sempre um jeito de ser dedilhado tempestuosamente na paleta cinza e íngreme da sorte madrasta.

Quando o sossego é um voo planado, sereno e tranquilo, ao sabor de brisas camaradas, e os horizontes são balsâmicos na sua extensão, eis que Zéfiro acha sempre uma forma linear de boicotar a contemplação mansa das searas e sopra rajadas opacas de vinagre e absinto gelado.

Quando a vida parece lubrificada e tudo corre sobre rodas, eis que as pedras apelam ao deus dos seres inanimados e poluem as engrenagens da esperança, substituindo a mansidão pelo caos, a calmaria pela desconfiança, a paz pela teoria das cordas.

Diário do absurdo e aleatório 273 - Emanuel Lomelino

Abençoadas alvoradas, e finais de tarde, em que ofereço a mim próprio alguns momentos de lazer e mato o tempo com estes exercícios de escrita, despretensiosos e sem compromisso.

São instantes que, na minha redoma de silêncio autista, permitem libertar-me dos grilhões de um fado odiado, que me consome e intoxica até ao tutano, e dão-me alento para tentar recuperar a sanidade que me foge todos os dias; a cada segundo, a cada expiração, a cada piscar de olhos.

Por mais absurda e obsessiva que esta rotina possa parecer, embrenhar-me na construção de textos aleatórios e isentos de literariedade é tão regenerador como respirar oxigénio puro para expurgar os venenos ingeridos na poluição dos dias.

Para desgraça já me chega a degeneração física natural da vida.

Diário do absurdo e aleatório 272 - Emanuel Lomelino

Deambulando pelos trilhos da irrealidade, onde os céus alaranjados são rasgados pelas asas de criaturas fantásticas, mas nada aladas, as pedras sussurram peregrinações e as flores espirram alergias a cada gota de orvalho.

Os caminhos são percorridos em marcha lenta, quando não em ré, tal como as águas dos rios que fogem das tropelias dos oceanos grávidos e se infiltram nas margens salgadas pelo suor de sargaços em crise de identidade.

As árvores dos pomares têm os ramos entrelaçados e os abelhões de barro esculpem castanhas piladas no coração das trepadeiras para que as formigas de barriga vazia encham o bandulho antes que a orquestra de cigarras, grilos e pirilampos inicie mais uma demonstração psicadélica de artes conjuntas sem fins lucrativos.

Assistindo a toda esta cornucópia de absurdos, como uma criança a olhar um caleidoscópio, está um homem, armado até aos dentes, que se perdeu quando tentava encontrar uma espingardaria para se abastecer de munições a tempo do início da próxima guerra.

Diário do absurdo e aleatório 271 - Emanuel Lomelino

Estou cansado das primaveras atrasadas, com flores estéreis e sem cor, espargidas de aromas inodoros. Prescindo dos favos de mel acerados pelas obreiras, sem solas nem décimo terceiro, e dos tijolos de milho prensado pelas ferraduras desenxabidas dos asnos-rei, também conhecidos como vendedores de banha-genérica – porque a banha da cobra já não compensa. 

Não quero mais esperar pelas marés de lua cheia nem pelo rodopio vertical das andorinhas acrobatas, em fins de tarde sem pôr-de-sol. Tampouco me interessam os aprendizes de Fernão Capelo, ou versões “pimba” das fábulas, onde lebres e cágados são personagens isentas de fiabilidade.

Cansei-me de todas as histórias inundadas de lugares-comuns e de oásis com palmeiras virtuosas, dromedários adormecidos, e odaliscas vergadas ao império do silicone. Já não tenho pachorra para evangelizações discursivas e esgotei a paciência nos testemunhos dos criativos de ponto cruz e bombazina.

Até os hálitos de menta e tomilho fumado deixaram de perfumar o ar que respiro, assim que estendi a toalha da fadiga e liguei a ventoinha de incenso.

Abdiquei do estéreo e voltei a mono.