quinta-feira, 21 de março de 2024

Diário do absurdo e aleatório 119 - Emanuel Lomelino

Permita-me, prezado Fiódor Mikhailovich, que simplesmente não o trate por Micha. Sei que reconheceria a gentileza do trato, mas, creia-me justo, fazê-lo seria usar da mesma intimidade impostora que o meu tempo sustenta, renegando os valores fundamentais dos ideais que se professam, como se a incoerência fosse virtude e a franqueza um pecado capital.

A consciência, nestes meus dias, estimado Fiódor Mikhailovich, há muito deixou de ser definida nos exactos termos etimológicos, que tanto explorou na vasta riqueza da sua obra. Atrevo-me mesmo a sentenciar, sempre com o seu consentimento, que ela – consciência – evaporou-se ao longo do tempo, como gotas de água num deserto escaldante, tal a profusão de actos prepotentes, praticados em nome das revoluções mais ociosas, e sem sentido, que nem o seu elevado intelecto ousaria considerar.

Por isso, amigo Fiódor Mikhailovich, aviso-o desde já que prefiro ficar, hora e meia do meu dia de sã loucura, retido na solidão de uma cozinha, a confecionar legumes de caril, do que perder tempo a ler as idiotas bajulações da modernidade, entre indivíduos que, apesar de pertencerem à nossa espécie, vendem-se como se castanhas piladas fossem raras pepitas de máximo quilate, desconhecendo que esse grau de pureza é incompatível com joalharia.

Este novo paradigma, meu caro Fiódor Mikhailovich, é tão complexo e paradoxal que, aos seus olhos, ouvidos e inteligência, as minhas palavras soarão aos discursos de um dos seus mais famosos personagens. Quem, senão um perfeito idiota, pode conceber que se outorguem falsos epítetos em nome de um conceito igualitário, mas alicerçado no individualismo egoísta, sem consciência da vulgaridade?

Hoje, Fiódor Mikhailovich, a verdade não vem nos dicionários. Talvez, nem nos livros de culinária.

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