Lomelinices
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O meu modo de criação é distinto e dá-me imenso trabalho, porque sou um autor estranho.
Leio uma frase, escuto uma conversa, oiço uma música, vejo uma imagem, e logo acende-se em mim uma estranha necessidade, impossível de controlar, de desenvolver a ideia.
Estranhamente, chamo os meus vizinhos dicionários, sondo verbos, adjectivos e substantivos, estudo sinónimos e antónimos, examino advérbios e pronomes, pesquiso significados e curiosidades, enfim, faço trabalho de laboratório. Experimento conceitos, construo frases, burilo daqui, pinto dali, desenho acolá, escrevo e reescrevo até que o texto me informe da sua disponibilidade para ir ao forno, secar a tinta e temperar o aço que o sustenta. E espero…
Espero que o sujeito – meu ortónimo (mais estranho que eu) – decida se deve ou não divulgar o que escrevi. Quando há aval positivo, ele pré-agenda e tudo fica em suspenso, até à data de publicação.
O processo faz com que exista uma grande distância temporal entre o dia que vê nascer o texto e o momento em que lhe é dado sentir a luz da visibilidade.
Este texto, escrito hoje, certamente só terá leitores daqui a um mês, ou mais. Ou devo dizer: este texto que escrevi há um mês, ou mais, só está a ser lido hoje.
Seja qual for a forma correcta de expressar a
ideia, de uma coisa tenho certeza: por causa do pré-agendamento, dependendo do
ritmo de criação, só saberão da nossa morte – minha e do ortónimo
obsessivo-compulsivo – meses depois de acontecer. E isso será um estranho
prolongamento da nossa vida. Uma espécie de imortalidade temporária.
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