Lomelinices
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De que serviria musicar um dia de sol com a alegria a dar ré por ter dó de si e deixar as outras notas no desconforto da solidão à espera de choverem, como se cada instante pertencesse a uma colcheia ou a um compasso, sem que existissem semibreves, pausas ou semínimas.
De que serviria pintar, numa folha de papel, as cores mais brilhantes de um arco-íris, se a paleta dos acasos só tem as tonalidades mais opacas e na palidez de um ápice não existe um pote de ouro, mirra ou incenso.
De que serviria untar as páginas de um caderno com as compotas do dia-a-dia, como quem barra manteiga na torrada, se o sabor de cada momento depende da fome que se tem, e às vezes uma fatia de pão seco é mais saboroso do que o repasto mais elaborado.
De que serviria temperar algumas frases, com as especiarias mais exóticas se a frescura das horas está no sal de uma lágrima, no mel de um sorriso, ou num olhar apimentado.
De que serviria escrever um diário, da forma tradicional que todos fazem, se fazê-lo implicaria dar nomes aos bois, e a outros jumentos, e perpetuá-los na história, enquanto o escrevente nunca alcançará melhor que o anonimato.
Mal por mal, é preferível pegar no absurdo acordeão das metáforas, rufar as gentilezas hiperbolizadas e tilintar os ferrinhos da ironia, porque o “querido diário” não é nada além de uma fanfarra eufemística, sem maestro, que só permite dançar quem saboreia o vinho de boa casta e desconhece a face do mosto, sem data, que lhe deu origem aleatória.
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