sábado, 31 de agosto de 2024

Contos que nada contam 18 (O caminhante) - Emanuel Lomelino

O caminhante


Silvério encostou o corpo cansado à parede rochosa, tentando encontrar, com os olhos baços, a linha do horizonte, como quem tem urgência em molhar os lábios ressequidos, no meio do deserto. Olhou à esquerda. Observou à direita. Apenas copas de árvores em relevos de irregularidade, e, aos seus pés, tão literal como respiração ofegante, a falésia íngreme e instável. Tremeu. Todo aquele cenário era uma analogia, tão real quanto apropriada, à sua vida.

Sentia-se envolvido por um deslumbrante mundo de beleza que não podia tocar, sob risco de perder o equilíbrio e desabar, em queda livre, ao primeiro passo mal calculado. As pernas opuseram-se ao reinício da marcha, paralisadas pela responsabilidade dos próximos passos. Todos os membros foram atingidos por um calafrio sufocante, como se uma corrente elétrica acabasse de os trespassar. Silvério nunca sentiu a eternidade como naquele momento.

Cravou os olhos na cruz plantada à beira do precipício e, mesmo não professando religião alguma, murmurou uma pequena prece como quem coloca o cinto de segurança antes de conduzir.

Afastou-se da parede granítica, palpou as escoriações de quedas anteriores, baixou a cabeça, certificou-se da firmeza do terreno a seus pés, inspirou fundo e retomou a caminhada, ladeira acima, determinado a prosseguir sem olhar para trás porque, por mais obstáculos que viesse a encontrar, a sua vontade de alcançar o planalto da tranquilidade era mais férrea do que aparentava e ele sentia necessidade de provar, a si mesmo, que era dono e senhor do seu destino.

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Lomelinices 5 - Emanuel Lomelino

Imagem cegoc

Lomelinices 


5


A generalidade das pessoas confunde conhecimento com inteligência, mas este equívoco pode ser desfeito achando a relação entre ambos.

O conhecimento é acúmulo de saber. A inteligência é o entendimento prático do que se sabe e, após a primeira aplicabilidade desse saber, deixa de ser inteligência, passando a fazer parte do acúmulo de conhecimento.

Para melhor entendimento façamos este exercício: Temos uma criança pequena e um interruptor. Com o tempo ela vai saber que aquele objecto tem um nome, uma função, e que ela (criança) pode interagir com ele (objecto). Até aqui ela apenas tem conhecimento. A inteligência só aparece quando ela colocar em prática esse conhecimento e, através do interruptor, iluminar a sala escura.

No entanto, essa demonstração de inteligência não se repete, porque a repetição deriva do acúmulo de saber e já não de um acto de inteligência. Por mais vezes que a criança ligue ou desligue o interruptor, esse acto já não é de inteligência, mas sim de conhecimento porque, por experiência própria, já sabe o que acontece em cada um dos momentos.

Assim, podemos concluir que o conhecimento é uma condição evolutiva (porque há acréscimo de saber), enquanto a inteligência é uma condição momentânea (porque a demonstração de inteligência só tem uma aplicabilidade por cada saber).

Conhecimento e inteligência são dois conceitos que não podem ser confundidos, mas dependem, isso sim, um do outro.


A este meu texto, que agora reedito e acrescento o presente parágrafo, aplica-se a lei do paradoxo porque existe quem tenha vasto conhecimento sendo pouco inteligente e quem sendo inteligente tenha escasso conhecimento.

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Contos que nada contam 17 (Indo à fava) - Emanuel Lomelino

Imagem retirada da internet

Indo à fava


Mandaram Alexandrino à fava e, como menino bem-mandado, preparou um farnel com duas fatias de pão saloio, uma tira de presunto fumado às escondidas, uma vasilha com os azeites, dois tomates secos, pedaços de queijo furado e um exemplar da Mensagem pessoana.

Com um cajado na mão direita, o farnel na esquerda, um pífaro ao pescoço e uma mochila enorme às costas, lá foi ele, estrada fora, acompanhado pelo fiel rafeiro sem dono, cumprir o seu destino de rumo incerto, por mais certo que o destino lhe fosse.

Subiu montes, desceu aos vales, bebeu chuva e, com a cabeça apoiada na mochila, dormiu ao relento.

A partir do segundo dia, esvaziado que estava o farnel, tocou pífaro em troca de rodelas de chouriço de fumeiro, toucinho de salmoura, pescoços e patas de galinha, cebola picada e pepinos murchos, cachos de uvas morangueiras, pêssegos descalibrados, dióspiros maduros, medronho fermentado, púcaros de água benzida e ossos para o rafeiro.

Alexandrino passarinhou meio mundo e todos aqueles que o viram passar ficaram a saber que o rafeiro era o seu companheiro de viagem, o pífaro era o seu ganha-pão, o cajado era o seu protector e na mochila carregava um confessionário.

Perante a descrença generalizada, ele abria a mochila, retirava um travesseiro e dizia:

- Não há melhor confessor que este! É todo ouvidos!

- E quem te absolve dos pecados? – perguntavam amiúde.

- Este! – respondia, enquanto erguia bem alto o livro de Pessoa.

E por isso, ainda hoje, continuam a mandá-lo à fava.

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Contos que nada contam 16 (O exilado) - Emanuel Lomelino

O exilado


Licínio era um homem forte e imponente, quase um paralelepípedo maciço, que impunha medo e respeito só de olhar.

O temor que impunha fez com que todos os habitantes da sua aldeia natal fossem morar em aldeias vizinhas, só para não estarem sempre em sobressalto. Até o corcunda de Notre-Dame o superou em afecto recebido.

Perante esta circunstância, ele construiu uma gigantesca muralha em redor dos limites da aldeia, como quem aceita um exílio forçado.

As suas mãos, descomunalmente densas, assemelhavam-se a bigornas de ferreiro – alguns acreditam que eram feitas de aço temperado, outros juram que eram iguais às de Atlas.

A musculatura do seu corpo era tão definida que muitos garantem ter sido ele o modelo dos escultores renascentistas. Só que ele era duas vezes mais volumoso do que qualquer estátua conhecida.

As suas pernas pareciam troncos de sequoia milenar e os seus passos eram tão pesados que, mesmo em bicos de pés, abria crateras no chão que pisava.

Licínio era tão grande e assustador que, durante toda a sua existência, jamais alguém se aproximou dele. Talvez, por isso, o dia da sua morte seja desconhecido e ninguém consiga dizer, com propriedade e conhecimento de causa, se ele alguma vez foi feliz.

terça-feira, 27 de agosto de 2024

Lomelinices 4 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


4


Quando a mente é acometida pela tempestade do questionamento as dúvidas relampejam, antecedendo o trovejar das perguntas mais estrondosas.

Há uma energia voltaica que eriça a curiosidade e chove uma urgência de respostas definitivas, como se os ventos da tormenta acalmassem às primeiras gotas de sabedoria.

Nesses momentos de intempérie não existem boias de conhecimento que ajudem a flutuar nas marés da ignorância nem botes de erudição à prova de tsunamis docentes.

À falta de solução para amainar o temporal, o melhor a fazer é navegar ao sabor da corrente e esperar que as ondas de interesse sejam atenuadas a cada nova conclusão, na esperança de não sermos empurrados para um porto rochoso e ter de enfrentar outro género de desafio mental.

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Epístolas sem retorno 15 - Emanuel Lomelino

Aldous Huxley
Imagem pinterest

Prezado Aldous,


Não faço ideia qual a água bebida, no início do século XX, para que as vozes do seu Admirável Mundo Novo pudessem ser tão visionárias em relação àquele a que fisicamente pertenço.

Mesmo não achando difícil prever-se o declínio da humanidade pelas suas próprias criações, acredito que deve ter existido algo mais do que originalidade na sua pena quando profetizou a ditadura tecnológica a que estamos sujeitos.

A seu desfavor, e correndo o risco de lhe provocar algum amargo de boca, toda a trama que idealizou foi falha no tempo. E por larga margem. Estamos bem longe de 2540 e já mergulhámos numa era de grandes desenvolvimentos tecnológicos ao nível da reprodução genética e de manipulação psicológica.

Sim, por muito distópica que possa parecer esta missiva, nada mais relato do que o estado hipnótico em que a sociedade actual se encontra. Uma letargia colectiva provocada pelo efeito tirano das novas tecnologias, que todos recusam ver e ao qual se entregam sem contestar.


Neo-escravo


Emanuel Lomelino

domingo, 25 de agosto de 2024

Epístolas sem retorno 14 - Emanuel Lomelino

Manuel António Pina
Imagem pporto

 

Prezado Manuel,


Sempre tive curiosidade em saber as razões para o obscurantismo de alguns poetas.

Durante anos alimentei-me de percepções e, ingenuamente, admiti que pouco mais havia do que consentimento e vontade própria em ficar-se nas sombras.

Apesar de reconhecer uma mão cheia de exemplos dessa tese, onde o incluo, quanto mais embrenhado ficava neste universo da escrita mais rápido fui aprendendo quão impactantes os holofotes podem revelar-se na transformação de muitos autores, cujos caracteres, num processo de destilação da personalidade, veem esfumar-se a importância dos princípios e valores essenciais ao ofício, sobrando o álcool dos egos e vaidades.

Depois… bem, depois tudo é medido em amperes e, quanto mais lâmpadas iluminarem os palcos, maior é a ofuscação e menor é o crivo.


Em consciência,

Emanuel Lomelino

sábado, 24 de agosto de 2024

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 9 - Emanuel Lomelino

24-07-2024


Enlouquecem-se-me os neurónios mais conservadores ao escutar as vénias que, os autodenominados vates da modernidade, fazem àqueles que realmente mereceram o epíteto.

Mesmo admitindo a existência de alguma admiração inicial, que inspire conceitos de beleza aos olhos de hoje, poucos são os que conseguem desenhar, com as suas penas, além de rascunhos e cópias forjadas.

Eu poderia relevar os discursos não fossem, varas de frases feitas, todas as estrofes construídas em nome de uma influência que acaba por nunca ser provada.

Em sã consciência, é difícil digerir palavras de louvor proferidas na hora de justificar criações disformes, como se todos os corcundas tivessem o encanto de Notre-Dame.

Não caem os braços ao mundo ao confessar-se pasmo pela excelência e reconhecerem-se as próprias debilidades. Seria tão mais engrandecedor do que simplesmente vomitar eruditismo de copia/cola virtual.

Temo que o Olimpo da poesia esteja a contorcer-se com a vacuidade hiperbólica dos elogios, como se cada novo verso fosse um cutelo afiado e pronto a rasgar a essência da própria língua.

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Contos que nada contam 15 (O novo eremita) - Emanuel Lomelino

O novo eremita


Tibério olhou a paisagem e decidiu que aquele era um bom lugar para descansar. Encostou a mochila na base de uma oliveira, descalçou as botas, que lhe vinham torturando os passos, tirou as meias rubras de sangue e mergulhou os pés macerados no pequeno e cristalino ribeiro, deixando que a correnteza lhe limpasse as feridas.

Suportou o doloroso incómodo sem perceber se a dor sentida era provocada pela temperatura, quase gelada, da água ou pelo contínuo toque do líquido nas inúmeras chagas abertas.

Tentou abstrair-se das moléstias centrando a sua atenção no vale que se estendia diante dos seus olhos. Lá, bem ao longe, ainda vislumbrava a pequena vila onde estivera, pela manhã, na intensão de comprar alguns mantimentos, mas cuja carga energética fez com que apenas a atravessasse, como quem foge de uma alcateia faminta. Desde o primeiro instante, sentiu que não era bem-vindo. Os olhares inexpressivos de todos - das crianças pequenas até aos velhotes enrugados - eram aguçadamente mais ameaçadores do que o tráfico veloz de uma autoestrada movimentada. Tibério sentiu que, a qualquer momento, podia ser abalroado pela fúria explosiva que esses rostos tinham, mas escondiam.

Tal como sucedera, dois meses antes, quando decidiu abandonar toda a sua vida na grande metrópole, para não ser contaminado pela idiotice dos pensamentos modernos, também a fuga da pequena vila o fez reflectir na sua postura. Ainda não conseguia entender se estava a ser fraco ou audaz porque não sabia identificar a ténue linha que separa a covardia da coragem.

A única certeza de Tibério era não ter forças, nem espírito, para enfrentar a mentalidade mentecapta das novas gerações que, na escassez de argumentos lógicos e válidos, tentam impor, através do confronto físico, as suas revoluções ideológicas. São moralistas sem moral (manifestam-se, despidos, contra a nudez de estátuas); idealistas sem ideias (são desocupados a lutar em favor do ócio); são incoerentes nas suas redundâncias (querem um modo de vida ambientalista, sem extração de minério nem combustíveis fósseis, mas não abdicam dos seus telemóveis de quartzo, gálio, lítio, tântalo, tungsténio, entre outros minerais, tampouco abdicam de usar poliéster sintético, acrílico e spandex nas suas tendas de campanha).

No meio dos seus pensamentos, Tibério deu conta de estar a ser observado, do outro lado do ribeiro, por uma lebre. No momento que os olhos de ambos se cruzam, o pequeno animal moveu a cabeça, que o humano entendeu como um gesto de aprovação.

Hoje, Tibério é um eremita, completamente afastado do mundo moderno e, ao contrário dos contestatários de fachada, vive a sua noção de sustentabilidade sem impor, seja o que for. Aprendeu que medo e valentia andam de mãos dadas, e um acto corajoso vindo de um cobarde ou demonstração de fraqueza de um bravo têm o mesmo valor.

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Epístolas sem retorno 13 - Emanuel Lomelino

Pierre de Coubertin
Imagem retirada da internet

Senhor Barão,


Todos aplaudimos a sua intensão de fazer do desporto um veículo de desenvolvimento pacífico da humanidade, em que o esforço físico, a agilidade mental e, sobretudo, a capacidade de superação sejam valores universais na preservação da dignidade humana.

Louvo os intentos, mas não posso ser indiferente à evolução deturpada dos princípios olímpicos e à forma como são geridos e aplicados, nomeadamente na hora de definir os critérios de avaliação em algumas modalidades, e na inclusão ou exclusão de outras.

Porque mencionar todas seria exaustivo, limito-me a fazer referência a duas situações flagrantes.

1 - Se o olimpismo se identifica como um modelo desportivo apartidário, apolítico e a favor dos direitos humanos consagrados, por que carga de água se proíbe, aos atletas, o direito fundamental da liberdade de movimentos fora da “aldeia” olímpica?

2 – Sendo as olimpíadas um evento desportivo, como se justifica que uma vertente de cariz cultural (breakdance) seja considerada desporto e algumas modalidades com expressão mundial (rugby, hóquei-em-patins, xadrez, etc.) não façam parte dos jogos?

Os critérios estão longe do meu entendimento e, creio não estar enganado, subvertem em absoluto a génese do seu idealismo.


Desiludido

Emanuel Lomelino

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Contos que nada contam 14 (O alpinista) - Emanuel Lomelino

O alpinista


Valdemar era um alpinista amador que gostava das sensações que, subir montanhas e pequenas encostas escarpadas, lhe proporcionavam.

Munido de todo o equipamento necessário e um vasto conhecimento sobre escalada, sempre que a vida permitia, lá ia ele para mais uma aventura. No início sozinho, depois acompanhado por outros que foi conhecendo.

O prazer que tinha nesta actividade lúdica era tanto que não se importava de dedicar algum do seu tempo a ajudar outros que tinham ritmo e experiência inferiores aos seus.

Tudo corria bem até ao momento em que alguns dos que ele auxiliara em inúmeras oportunidades começaram a agir como fossem experimentados escaladores de Evereste, juntando-se a outros alpinistas fanfarrões, e passaram a ignorar os seus conselhos sobre questões de segurança.

Para Valdemar era muito difícil ver aquela gente a praticar actos negligentes e saber que, mesmo assim, a cometerem tantos erros, todos eles tinham planos para aventuras em locais mais exigentes e onde qualquer falha pode significar uma fatalidade.

Muito a contragosto, mas com receio de poder assistir a alguma tragédia, Valdemar deixou de comparecer nos locais habituais com tanta regularidade, acabando mesmo por abdicar de fazer alpinismo.

Hoje, já não dá conselhos a ninguém, nem quando o solicitam, mas continua a dedicar o tempo livre ao exercício físico… só que na esteira lá de casa.

terça-feira, 20 de agosto de 2024

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 8 - Emanuel Lomelino

20-07-2024


Nesta era digital dá-se demasiado valor e relevância exagerada aos “influenciadores”. Crê-se estar perante fenómenos de massas, mas a leitura e entendimento desta realidade revela-se-me errada.

Não nego o “fenómeno de massas”. Esse existe, sem sombra de dúvida, contudo, tanto o fenómeno como as massas são identificadas de forma errónea.

O fenómeno não é o ´"influenciador", mas sim a quantidade absurda de gente de cabeça oca que vive em função das opiniões, quase nunca relevantes, de alguém que apenas soube como rentabilizar o verdadeiro fenómeno, chamado seguidismo.

Quanto às massas, essas não são os seguidores, mas sim as quantidades obscenas de dinheiro que o fenómeno seguidista proporciona aos espertos “influenciadores”.

No meio de toda esta ideia de “fenómeno de massas”, para além dos “influenciadores”, quem mais tem a ganhar, e por isso investe de olhos fechados na continuidade deste estado de letargia pensante colectiva, são as empresas que só existem porque existem rebanhos de consumidores cegos e enfermos de futilidade.

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Contos que nada contam 13 (De néscia a céptica) - Emanuel Lomelino

De néscia a céptica


Virgínia foi sempre uma mulher discreta, simples, mas dotada de uma ingenuidade infantil que a irritava profundamente. Por mais que tentasse – e tentava com todas as forças da sua vontade – era apanhada de surpresa com muitas coisas óbvias que lhe fugiam à percepção, mesmo quando era, previamente, alertada.

Essa inocência nata era a fonte maior das suas desilusões, e a cada novo desapontamento, a cada novo dissabor, ela prometia regenerar-se e voltar outra pessoa. Mas não havia volta a dar. Uma e outra vez, sorrateiramente, lá vinha mais uma decepção, e outra, e outra, e outra…

E foram tantos os desgostos que Virgínia acabou por transformar-se numa alma descrente com o mundo e amargurada consigo própria.

O pior foi descobrir que, algumas pessoas que muito prezava, tinham-se aproveitado da sua credulidade levando-a a abdicar da única pessoa que realmente lhe foi fiel, em todos os sentidos.

Virgínia não se perdoa por ter dado crédito às intrigas de bastidores e recebido como verídicas algumas suspeitas que lhe plantaram na mente.

Hoje vive reclusa nas grades do cepticismo mais impenetrável e desconfia até das intenções da própria sombra.

domingo, 18 de agosto de 2024

Contos que nada contam 12 (O ex resiliente) - Emanuel Lomelino

O ex resiliente


A vida transformou Orlando num homem de caráter tão firme e sólido quanto betão. Os seus comportamentos eram pautados pela coerência, correcção e sentido de justiça. Todas as suas opiniões eram fortes e sustentadas por argumentos mais válidos do que um cartão de cidadão recém renovado. Não tinha pejo em identificar publicamente aquilo que lhe desagradava, da mesma forma que não se coibia de apontar o que lhe era caro. Naturalmente, esta forma de ser e estar, tanto cativava gente como afastava outros. O mais difícil era encontrar quem ficasse indiferente à sua presença.

Uma das características mais relevantes de Orlando era a capacidade de resiliência que mantinha, principalmente, nos momentos mais complicados, que até foram em número considerável, e permitiram que alcançasse pequenos, mas satisfatórios triunfos pessoais, dos quais nem fazia muito alarde, bem pelo contrário, tinha prazer em que outros o acompanhassem e tivessem os mesmos sucessos.

No entanto, pouco a pouco, sem que alguém percebesse, Orlando decidiu mudar o rumo da sua vida e começou a prescindir das coisas que, até então, lhe eram importantes.

Abandonou algumas convicções. Desistiu de objectivos. Colocou os sonhos de lado. Abdicou de vontades e quereres. Enfim, alterou os seus hábitos e transfigurou-se, completamente, em alguém que apenas existe.

Os que lhe eram mais próximos nunca entenderam as razões para aquela mudança radical e acabaram por perder-lhe o rasto.

Embora não se consiga provar, porque ele nunca explicou, surgiu a teoria de que Orlando, simplesmente, optou por apagar, deste mundo, todos os vestígios da sua existência. Por isso, ninguém sabe se já morreu ou se é alguma das sombras que deambulam nos becos do anonimato.

sábado, 17 de agosto de 2024

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 7 - Emanuel Lomelino

19-07-2024


Ponto prévio… sou convictamente laico, jamais discuto religião, guio-me na vida pelos mandamentos da minha consciência e não tento doutrinar ninguém.

Outros há que acenam aos ventos as suas bandeiras de crença, tentam evangelizar como fossem mandatados por divindades, mas têm ideias e, acima de tudo, comportamentos isentos de beatitude, para não dizer demoníacos.

Apesar da minha laicidade, sou produto de uma sociedade com grande influência cristã e, talvez por isso, alguns dos valores que defendo sejam comuns.

Outros há que, defendendo esses valores, agem como se os conceitos fossem exclusivos de quem professa a mesma doutrina religiosa, interpretando-os à luz da sua conveniência e de acordo com as circunstâncias. Ao estilo: “faz o que eu digo, não faças o que eu faço”.

O exemplo mais recente veio da classe política. Os mesmos que encabeçaram as manifestações anti xenofobia, racismo e homofobia, em nome dos valores humanitários cristãos que devem ser constantemente defendidos, foram os mesmos que enviaram, para Moscovo, dossiês pormenorizados sobre todos os participantes russos que estiveram na manifestação contra o governo daquele país. Só ficou por explicar qual o valor humanitário cristão adjacente a este acto delator.

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Ao pé-da-letra 4 - Emanuel Lomelino

Pintura de Columbano Bordalo Pinheiro
Imagem pinterest

Ao pé-da-letra 


4


O universo da escrita, nos diversos patamares que o compõem, usou a globalização de forma desmesurada e, consequentemente, deu origem a alguns fenómenos – vulgo personagens – que, apesar dos elevados níveis de incompetência, jamais assumem os fracassos e outorgam culpas a terceiros.

Outros, com mais-olhos-do-que-barriga e mania-das-grandezas, suprassumos virtuais na elaboração de obras opacas, alardeiam capacidades acima-da-média, que nunca tiveram, e nem dão conta de estarem a fazer-a-cama onde se deitarão.

Mas os piores de todos são aqueles que não demonstram qualquer remorso, nem sentem peso na consciência, quando cospem-nos-pratos de onde comem a visibilidade que têm.

Em comum, todos eles são, por norma (há excepções), velhos-do-Restelo.

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Lomelinices 3 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


3


Quando os passos se tornam um fardo pesado, a mente, incoerente como só ela, afasta-se ainda mais do corpóreo e abraça o caos das ideias, como quem só consegue cumprir-se na desordem.

Então, num caleidoscópio de propósitos e desígnios emaranhados, surge o alheamento às mazelas do corpo e respirar volta a ser um gesto sem aflição.

Todos os hematomas, cicatrizes e feridas abertas transformam-se em galardões impessoais, como se, num golpe de mágica, os ardores e agonias dolorosas ganhassem a virtude da insensibilidade.

Os horizontes deixam de ser distância angustiante e invertem-se as prioridades – os sonhos dissipam-se e a verdade está nos detalhes do impalpável.

O tempo perde o brilho. A realidade é difusa. As pálpebras são cortinas. As vozes esfumam-se. O bocejo solta-se. E por fim adormeço anestesiado por esta esquizofrenia jazzística.

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Epístolas sem retorno 12 - Emanuel Lomelino

Luís Vaz de Camões
Imagem pinterest

Prezado Luís,


Cinco séculos de voltas ao sol e a melhor forma que os lusófonos encontraram para homenagear quinhentos anos de legado foi discutir tudo menos a importância e originalidade da tua obra.

No meio de tantas vénias literárias (quase todas sem sentido e deslocadas no propósito) só faltou dissertar-se sobre a localização exacta da pala que cobria um dos teus olhos.

Escreveram-se overdoses de fascínio e celebração, sem critério nem estética - pasma-te se não o sabes ainda - ignorando a maestria lírica que desenvolveste.

Lamento informar, mas esta exultação camoniana não é sinal de adoração ao vate, tampouco é sintoma de espírito unitário lusófono. Tudo isto é uma representação fiel das transformações sofridas pela língua e, sobretudo, pela radical mudança de hábitos, costumes e comportamentos, ao longo de quinhentos anos.

Acho que a única característica que sobreviveu à passagem do tempo é esta apetência para a criação consciente de Adamastores, para explicar a dureza das jornadas. Mas é só. A bravura de carácter e a ambição de outrora deixaram de existir a partir do momento em que se extinguiram os mares nunca antes navegados e nasceu o verso livre.


Simplesmente

Emanuel Lomelino

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Contos que nada contam 11 (O vidente) - Emanuel Lomelino

O vidente


Malaquias nasceu vidente e muito cedo na vida descobriu que era o único. Habituou-se a conviver com as imagens do futuro e nunca contou nada a ninguém, nem mesmo quando, preocupados com ele, os pais o levavam aos médicos tentando descobrir de onde vinha a tristeza do seu rosto, a timidez do seu jeito de andar e a melancolia das suas palavras.

Aprendeu a conviver com as dores, angústias e desesperos que as visões injectavam na sua mente e, sabendo que nada poderia fazer para evitar alguns eventos, decidiu moldar-se a essa circunstância com opções de vida que impedissem os seus estados de espírito de afligirem quem o rodeava.

Malaquias viveu em sofrimento constante, com esparsos laivos de felicidade, muito pontuais, mas no final, pouco antes do último suspiro, fazendo o balanço da sua vida, ele sorriu por saber que todos os seus amores foram escassos mas genuínos, e nunca ter sentido, na pele, o gosto da traição, a amargura do desapontamento, ou a acidez da dúvida.

segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Contos que nada contam 10 (O frustrado feliz) - Emanuel Lomelino

O frustrado feliz


Franklim nasceu feliz, teve uma infância pobre, mas feliz, foi um adolescente tímido, mas feliz, até que chegou à idade adulta… e continuou a ser feliz.

Toda a gente gostava de Franklim, do seu jeito simples de ser, mas com personalidade, do seu humor subtil e inteligente, da sua conduta irrepreensível e firmeza de carácter.

Contudo, muitos reparavam que, apesar de irradiar felicidade por todos os poros, Franklim tinha duas rugas de tristeza no rosto.

Um dia, em conversa mais íntima com um amigo de infância, Franklim confessou que, mesmo sentindo-se um homem feliz, andava um pouco frustrado porque não estava profissionalmente satisfeito – não gostava do trabalho que tinha. O amigo aconselhou-o a ir em busca daquilo que o pudesse realizar nesse quesito. E ele assim fez.

No início foi como estivesse a viver em constante êxtase, no entanto, com o passar do tempo, o rosto de Franklim ganhou mais rugas de tristeza, e toda a gente reparou.

Franklim passou a estar cada vez mais distante do mundo, deixou de demonstrar interesse nas conversas, as suas piadas perderam a graça, as conversas deixaram de ser interessantes. Já não era o mesmo homem.

O tal amigo mais íntimo quis saber o que se passava e Franklim admitiu que, apesar de estar mais envolvido com um trabalho apaixonante, não conseguia sentir prazer ao realizá-lo.

Desta vez, o amigo não deu conselho algum, apenas demonstrou preocupação com o ânimo de Franklim e expressou o desejo de voltar a ver a felicidade estampada no rosto dele.

Franklim decidiu dar dois passos atrás para se reencontrar. Na sua cabeça passou a ser preferível trabalhar em algo que se despreza, mas ser feliz, do que ter um trabalho que o realize, mas o deixe miserável.

Se a vida fosse uma novela tudo acabaria por se resolver e as coisas conspirariam em seu favor. No entanto, como a vida não é ficção pós telejornal, Franklim faz o trabalho que mais odeia, está mais longe de se encontrar e voltar a ser quem foi um dia. E as rugas são cada vez mais.

domingo, 11 de agosto de 2024

Lomelinices 2 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


2


Resisto ao desespero de ver-me despetalar por estes ventos raivosos que cismaram na minha erosão permanente.

A mente, que por vezes despede-se de mim, tende a ganhar sulcos áridos, com o simples propósito de transformar as ideias em desertos ásperos, onde predominam as sombras que detonam quaisquer certezas que a vida me tenha emprestado.

É no seio de uma lucidez dúbia que questiono as horas céleres, os passos enviesados, as plantas rasas, os voos dos pelicanos e aquele sentimento inútil de estar a ver os navios passarem, sem rumo nem porto pré-definidos.

Os horizontes ocultam-se numa penumbra de vozes contraditórias e há línguas de fogo em cada encruzilhada, dificultando a passagem, seja qual for o caminho escolhido, como se todas as direcções levassem ao mesmo mar de lava e desfortúnio.

O destino é um fardo afastado do entendimento lógico.

sábado, 10 de agosto de 2024

Lomelinices 1 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


1


Todas as manhãs, aos primeiros raios de sol, amanhece-me uma revolta sufocada cujos sintomas são precações murmuradas e súplicas heréticas.

Estas sublevações mentais vespertinas nada mais são do que gritos rebeldes e contestatários pela contínua repetição dos dias, que nascem, correm e terminam sempre da mesma forma como fazendo parte de um looping infinito.

Mas este espírito amotinado peca pela incoerência porque a génese da insurreição é a mesma que suporta a via alternativa.  

O problema que transtorna o âmago não existiria se a rotina fosse outra; se o rácio entre ónus e bónus fosse distinto; se as horas de responsabilidade não esmagassem as de placidez; se o tempo não se espartilhasse entre obrigações e deveres; se a respiração fosse compassada e não houvesse sangue, suor e lágrimas…

Enfim… as coisas são como são e amanhã, quando o sol raiar, cá estarei para sussurrar, entre dentes, mais alguns jargões e preces ofensivas, porque pior do que ter uma rotina indesejada é não ter rotina alguma.

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Ao pé-da-letra 3 - Emanuel Lomelino


Ao pé-da-letra 


3


Um dos problemas da humanidade é ignorar a etimologia das palavras e, por isso, desvalorizar ou sobrevalorizar algumas situações da vida.

Vejamos, como exemplo simples, a preocupação.

Tal como a própria palavra explica, estamos perante uma “pré-ocupação”, logo, uma ocupação antes de tempo.

Pensar em algo de forma antecipada não traz mal algum ao mundo, bem pelo contrário, pode ser a forma mais simples de resolver um problema futuro, no entanto, a tendência é exacerbar os pontos negativos e isso, na maioria das vezes, acaba por toldar o discernimento necessário para a sua resolução.

Sem desvalorizar as consequências e a necessidade de ultrapassar-se um obstáculo, esta é uma das palavras que, encarada ao pé-da-letra, ajuda a tornar a vida mais leve e menos desgastante. Porque tudo deve ter conta, peso e medida.

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 6 – Emanuel Lomelino

Imagem cmjornal

14-07-2024

É estranho viver numa época em que (dizem) a humanidade está cada vez mais individualista, mais solitária, mas assistirmos à criação espontânea de hordas de Madres Teresas – não obrigatoriamente de Calcutá – a defender causas supérfluas, numa espiral de antitudo e mais alguma coisa, só porque alguma alma iluminada (que ninguém conhece) decretou que todos devem pertencer a um grupo, sob risco de, ao não fazê-lo, cair em fenómenos depressivos.

Depredar espaços e equipamentos públicos, como forma de contestação, jamais poderá ser considerado terapia antidepressiva. Isso é vandalismo.

Atacar indivíduos, de forma indiscriminada, com actos de intimidação e violência colectiva, não é paliativo para a ansiedade, é cobardia pura.

Perseguir, ameaçar e fazer linchamentos de caráter, porque alguém disse ou cometeu uma alarvidade, nunca será prescrição médica para aliviar o stress, isso é leviandade.

Participar neste género de embriaguez comunitária não é liberdade de expressão, tampouco é exercício de direitos adquiridos, é simplesmente associação criminosa e atentado aos valores que, pasme-se, estas massas, de mentecaptos egocêntricos e neodepressivos, dizem defender.