quinta-feira, 11 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 245 - Emanuel Lomelino

Quando o despertador começou a chinfrinar, Clemente emergiu de um sono tranquilo para um amanhecer indesejado. Há algum tempo, essa era a penosa transição que ele se via obrigado a suportar todas as manhãs. Dormir noites inteiras como um anjo e acordar para enfrentar dias infernais.

Para conseguir manter a sanidade, além da farda, Clemente passou a vestir também a pele do boneco que criou, como fosse um actor entrando no corpo do personagem. Mesmo sentindo-se ridículo com a artimanha, ele sabia que não havia outra forma de ultrapassar incólume dias repletos de frustração.

Na sua cabeça era uma questão de tempo. O seu plano era sujeitar-se até acumular o dinheiro suficiente para pôr pés ao caminho, ir para outro lugar e refazer a vida. “Às vezes é preferível ficarmos mais algum tempo no meio da tempestade do que nos abrigarmos no primeiro porto que encontramos” – pensava muitas vezes, com os seus botões, para justificar a demora da mudança.

Os anos foram passando e, sem se aperceber, Clemente foi-se acostumando a ser mais o boneco do que ele mesmo e a sua essência começou a esvair-se. De tal modo que nem ele já sabia distinguir um do outro. Morreu carunchoso.

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