quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

No fundo do baú 38 - Emanuel Lomelino

Não quero louvores porque os epítetos, que outrora significavam admiração e reverência, perderam o fulgor e tornaram-se adjectivos vulgares expelidos com interesses ocultos.

Não quero aplausos porque as salvas, que outrora significavam encanto e respeito, perderam o brilho e tornaram-se estampidos comuns musicados com intensões obscuras.

Não quero premiações porque as medalhas, que outrora significavam reconhecimento e cortesia, perderam o valor e tornaram-se insígnias outorgadas com conotações escarnecidas.

Prefiro as miradas silenciosas porque através dos olhares consigo ver a diferença entre as vénias sinceras e os galardões aparentes.

Prefiro os sinais discretos porque através dos gestos consigo ver a diferença entre as anuências puras e os falsos elogios.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

No fundo do baú 37 - Emanuel Lomelino

Não existem muitos estudos sobre a matéria e quase todos pecam pela escassez informativa, sendo pouco esclarecedores.

Não há consenso quanto à forma de classificar este género de transtorno porque a multiplicidade de sintomas não permite deduzir se estamos perante uma tendência patológica ou uma perturbação mental. Esta dificuldade deve-se ao facto de existirem diferentes graus de manifestação do fenómeno, sempre dependente de cada infectado.

Sabe-se que é um vício. Uma dependência incontrolável que, mesmo detectada precocemente, é difícil de combater porque a ciência, ao contrário do que fez com outras adições, ainda não conseguiu identificar uma origem concreta e universal. Os únicos factos comprovados são que, em nenhuma circunstância, e apesar de ser uma condição pandémica, não há casos de regressão, apenas de progressão, mas não se conhecem casos de mortalidade associada, logo, não tem características malignas.

Assim sendo, não existindo fármacos nem tratamentos paliativos específicos, recomenda-se que todos os adictos diagnosticados prossigam as suas vidas dentro da normalidade que a sua compulsão pela escrita permite, até que se descubra um antídoto.

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

No fundo do baú 36 - Emanuel Lomelino

Cansado de frases feitas e clichés de ocasião, o corpo embrulha-se em si mesmo e chora todas as dores – as que tem, as que sente, e as que estão por vir.

Nesse recolhimento não há verde nem outra cor qualquer que mascare a palidez da derme triste e dormente. Só escuridão absoluta e isenta de compaixão.

Assim retraído, procura defender-se das inclementes chuvas metafóricas e mordazes que não cessam de ferroar, como ponteiros no extremo da agudeza e perversidade.

Quanto mais se fecha, na sua redoma sem escudo, mais expostas ficam as cicatrizes que o abraçam, e mais abertas ficam as feridas que o retraem.

O processo repete-se tantas vezes que acaba por transformar-se num ciclo vicioso e o corpo cede ao inevitável, converte-se à dor instituída e deixa de sentir…

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

No fundo do baú 35 - Emanuel Lomelino

Hoje, a palavra escrita é a representação gráfica de alguns gritos presos na garganta; de alguns impropérios que não podem ser proferidos porque ainda há crianças acordadas; de algumas imprecações lamechas que não combinam com a linguística socialmente aceite.

Hoje, a palavra escrita é uma fuga silenciosa aos fantasmas que teimam em assombrar os ingénuos; aos enfadonhos oradores que não sabem a diferença entre os sinónimos poéticos de festa e plenário; aos inúmeros arrolhadores das plataformas digitais.

Hoje, a palavra escrita é a excessiva glorificação do silêncio; é a exaltação dos pensamentos mais mundanos e vulgares; é o elogio à criação narcisista – dispensável como a maionese numa salada de frutas.

Hoje, a palavra escrita não é um exercício catártico; uma purificação de alma e espírito; um exorcismo de angústias, desilusões, desesperos.

Amanhã, a palavra escrita simbolizará outras coisas – ainda bem – porque também os dias são todos diferentes e merecem ser descritos com as palavras que melhor se adequam à sua singularidade.