quinta-feira, 31 de julho de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 39 - Emanuel Lomelino

22-07-2023


O mundo desembaraçou-se de absolutismos geográficos, ditaduras físicas e embargos cerebrais em nome da evolução da espécie, no entanto, agora erguem-se muros de intolerância, fronteiras de radicalismo, extremismos de carácter.

Saímos de dois milénios de dogmas e estigmas para mergulharmos numa era de paradigmas irracionais e verdades forjadas apenas porque tudo deve ser desmoronado, mesmo o que deveria estar solidificado.

Mudou-se o cimento autoritário pelo despotismo cimentado. Substituiu-se a imposição da força pela força da imposição. Trocou-se a luta por liberdade pela liberdade de lutar. Alterou-se a defesa de valores pelos valores de ataque.

O mundo transformou-se num gigantesco paradoxo em tão ínfimo espaço de tempo que temo estarmos a caminhar para a loucura coletiva.

Tudo isto faz-me lembrar a história verídica daquele que foi diagnosticado com obsessão compulsiva por, a toda a hora, desinfetar-se da cabeça aos pés. Todos o recriminaram e chamaram de louco, e no momento em que saiu do sanatório, terminado o tratamento forçado e dado como recuperado, o mundo passou a esfregar-se com álcool-gel.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Prosas de tédio e fastio 84 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


84


Odeio que façam algo em meu lugar, tampouco gosto de adjudicar trabalhos a terceiros, porque os “voluntários” e “solícitos” julgam que qualquer uma das situações faz de nós eternos devedores de um favor que nunca foi pedido, e por vezes até já foi pago.

Odeio as frases feitas porque são sinais de alerta para a presença de alguém que nada de novo tem para acrescentar, por preguiça de formular uma opinião própria.

Odeio as conversas de circunstância que só existem para expressar o quão insonsa é a comunicação entre os envolvidos e servem apenas para matar o tempo até que algo interessante aconteça a um dos intervenientes.

Odeio as perguntas que exigem uma resposta monossilábica, porque demonstram o completo desinteresse do questionador sobre o questionado.

Odeio os exaustivos e enfadonhos discursos, multitemáticos, proferidos na sequência de uma pergunta concreta e objectiva, como se a questão fosse abstrata e abrangente.

Odeio a falsa exacerbação dramática e a exaltação excessiva de regozijo, porque ambas padecem de exagero tão desmedido quanto desnecessário.  

Odeio os elogios fáceis porque são os mesmos que fazem a outros. O elogio devia ser como um cartão de cidadão ou bilhete de identidade: pessoal e intransmissível.

Odeio tantos outros comportamentos de incoerência, mas não tenho tempo para detalhá-los como estivesse a compilar uma tetralogia sobre gente de múltiplas máscaras.

terça-feira, 29 de julho de 2025

Prosas de tédio e fastio 83 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


83


Há um contragosto fatigado e dorido que fere a vontade de mudança rumo ao júbilo.

Existe uma feroz tristeza, que é real e inibe o ambicioso desejo de subir, degrau após degrau, até patamares mais ousados.

Permanece a inoportuna febre que restringe as passadas necessárias para que o arrojo triunfe.

Há um fúnebre cansaço que pesa no corpo como quem proíbe uma progressão legítima e impede o regozijo da glória.

Permanece uma indolente escravidão, sem grilhões, mas bem mais carcerária que as celas de Alcatraz, que dificulta a mais insignificante conquista.

Há uma fragilidade prenhe de restrições que prende os movimentos suaves e singelos, como quem maniata os avanços mais naturais e precisos.

Existe um melancólico acanhamento do ânimo que, pouco a pouco, desfalece por inércia imposta pelas punitivas circunstâncias de todos os dias.

Permanece o insucesso do querer por imposição de um dever odiado, mas crucial para que as metas sejam cruzadas.

Há, existe e permanece um temor ofegante de que todo o esforço despendido seja inócuo e em vão.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Pensamentos literários 39 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 


39


Na dúvida do que está por vir e enquanto não surge a certeza do futuro, embrenho-me na escrita, tal qual a penso e sinto, mas sempre na esperança de que cada mote se justifique por si mesmo, sem me explicar.

Não falo de mim nem me denuncio, porque sou abstrato, livre e obcecado pela minha privacidade. Antes crio meadas que teço com os fios velhos que reaproveito. Antes burilo gemas sem brilho que encontro nos troços que percorro. Antes cultivo as sementes do raciocínio, que é comum ao mais comum dos mortais. Antes cinzelo ideias universais com a perícia de quem desconhece tudo, mas suspeita. Antes refino o carvão dos sentidos e dou corpo de diamante às palavras que uso. Antes lavro pensamentos vulgares com fitas coloridas e enfeitadas de verdades.

Depois sou engolido pela noção errada das interpretações que me fazem por ser avaliado pelo que escrevo, como se isso, de alguma forma imperativa, pudesse definir o meu mais recôndito, misterioso e oculto interior.

O homem existe, somente, na intimidade de mim e para conhecimento de quem está próximo. O que está além disso é apenas sombra e o instrumento que dá corpo ao autor.

Esse sim, encontra-se, em toda a plenitude e substância, regido pelo devaneio de dar a conhecer a sua capacidade instintiva de criar a partir do zero. Esse sim, tal qual um heterónimo, merece interpretação, nunca pelo que é, mas pelo que constrói com o estro vulgar que detém e trabalha.

domingo, 27 de julho de 2025

Prosas de tédio e fastio 82 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


82


Nasce-se para se morrer, independentemente daquilo que se fizer no intervalo.

Já nasci e morri tantas vezes que a cronologia natural desses feitos deixou de fazer sentido.

Todas as mortes foram diferentes, enquanto os nascimentos foram tremendamente dolorosos para mim, com excepção do primeiro, cujas dores nem recordo.

Nasci e morri de tantas formas distintas que, em algumas delas, senti-me um personagem de Lovecraft.

Foram tantos os partos que nem deu tempo para fazer certidões de nascimento, porque as mortes estavam ao virar da esquina.

Foram tantos os óbitos que nem a necrologia conseguiu acompanhar e ninguém foi notificado.

Morri e renasci tantas vezes que já nem gato sou.

Com tantas parições e falecimentos foi-me permitido confirmar que, por mais que se faça tudo certinho em cada vida, de múltiplas e diferentes formas possíveis, nunca seremos capazes de impedir o desfecho final. E essa circunstância implica que no final das contas, o número de nascimentos será sempre igual ao de mortes.

sábado, 26 de julho de 2025

Prosas de tédio e fastio 81 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


81


Não existe falácia na ânsia causada por um silêncio violado pela maliciosa verve, intencionalmente impostora, que fere de garras afiadas os órgãos mais frágeis, como lâmina aquecida a perfurar matéria inflamável.

Não há remorso nas labaredas que beijam os sentidos na esperança de postular uma cauterização lenta até ao cessar dos dias, como a queda num precipício infindo.

Ninguém percebe a vontade intrínseca do sal líquido derramado como consequência do fétido ardor que um verbo pode causar quando penetra o interior imaculado – como floresta virgem - isento de mágoas e nódoas.

Ninguém entende a extensão dos danos perpetrados pela radioatividade das palavras ácidas, propositadamente regurgitadas como cuspidela traiçoeira de um réptil mal-intencionado.

Ninguém compreende o desgosto de um tímpano ferido de inverdades. Há um mórbido desejo de surdez permanente, que é herético, mas apetecido como água fresca em dia desértico.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Prosas de tédio e fastio 80 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


80


Quando os vidros e espelhos se transformam em estilhaços espalhados de modo arbitral no solo roído pelos passos de outrora, não estão sós e isolados. Ficam na companhia da caliça que já foi reboco; de alguns tufos de pelos com proveniência incerta; de heras que se atreveram a romper o betão para despontar entre as frestas de um chão que já foi imaculado; de pedaços de mosaicos quebradiços que a passagem do tempo libertou; de fragmentos de papel retalhado e amarelado pelo mofo; de poeira bafienta originária de múltiplas fontes; de lascas de madeira caídas de armários descoloridos e empenados, cujas portas estão seguras por uma única dobradiça enferrujada; de uma poça de água choca que, volta e meia, é alimentada pela goteira que o telhado esburacado deixou formar, e por onde entram aves para o descanso nocturno ou para se protegerem.

Todo este entulho de ruína e caos é cúmulo de memórias descartáveis que alguém – que pode ser plural – deixou para trás como estivesse a abandonar o mais irrelevante de si.

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Prosas de tédio e fastio 79 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


79


O ritmo, a cadência, a duração dos fragmentos de tempo é igual para todos, sem excepção. Ninguém vive segundos, minutos, horas, dias, semanas com maior duração do que os outros. A diferença está na forma como cada um usa o tempo; no modo como o gasta; na utilidade que lhe dá; no desaproveitamento que lhe faz.

O tempo é um só. Tão regular e contínuo, quanto obstinado e persistente na constância. O tempo é obsessivo, dono do seu nariz, pouco lhe importando a forma, o modo ou o jeito como o preenchem.

A génese das queixas sobre o tempo está no grau de prioridade que cada um, em toda a sua vitimização, dá ao tempo que lhe cabe. Por isso existem os desleixados e os organizados; os irrequietos e os cómodos; os espalhafatosos e os discretos; os inteligentes e os chico-espertos; enfim, aqueles para quem falta tempo e os outros que têm tempo de sobra. Apesar do tempo ser sempre o mesmo.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

Prosas de tédio e fastio 78 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


78


Erradamente, supôs-se que a vida seria uma simples equação matemática. Mas alguém, fraco no domínio da álgebra e apenas conhecedor dos números inteiros, enganou-se nos cálculos por não contemplar décimas, fracções, ou raízes quadradas.

Supostamente, a vida deveria ser um segmento de recta. Todos a partirem de um ponto A para chegarem, linearmente, a um ponto B. Mas alguém, fraco em geometria, olvidou a existência de círculos, triângulos, quadrados, etc. Tampouco conhecia ângulos, senos, cossenos, tangentes, catetos e hipotenusas.

Na verdade, de nada nos serve sabermos fazer cálculos avançados ou trigonométricos porque a complexidade da vida ultrapassa todas as ciências.

Para facilitar as coisas, pensemos na vida como uma enorme espiral irregular que contradiz todas as teorias conhecidas.

As contas nunca batem certas, os ângulos estão sempre errados, e as figuras geométricas têm formas difíceis de entender ou identificar.

Bem vistas as coisas, só o ponto de partida A e o ponto de chegada B são os elementos reais da equação da vida, tudo o resto são incógnitas disformes.

terça-feira, 22 de julho de 2025

Contos que nada contam 42 (O religioso) - Emanuel Lomelino

O religioso


Romualdo nasceu no seio de uma abastada família extremamente conservadora, devota aos preceitos religiosos mais rígidos e sob influência de crendices e obstinações que moldaram o seu carácter introvertido, preconceituoso e, sobretudo, supersticioso.

Mais do que demonstração de fé, as benzeduras que fazia, em criança, eram provocadas pelo temor que sentia quando presenciava, ou ouvia algo, que lhe haviam incutido como pecado capital e merecedor de castigo divino, por julgar que testemunhar semelhantes afrontas ao divino fazia dele um cúmplice de prevaricação.

Quando alguém vociferava, ele benzia-se e murmurava um “pai nosso”; quando via um casal beijar-se, benzia-se e rezava uma “ave maria”; quando se cruzava na rua com uma adolescente de calções curtos e top minúsculo, benzia-se e evocava o espírito santo.

O seu fanatismo religioso chegou a níveis tão extremos que, ao atingir a idade adulta e com a inclusão que a maioridade lhe outorgou nos eventos sociais familiares, passou a acreditar que apenas ele era digno de bênçãos e favores divinos porque até a sua família infringia os sagrados mandamentos, pela prática da poliginia; por ter acumulado fortuna; pela ostentação revelada nos inúmeros banquetes que organizavam, pela quantidade de objectos de adoração existentes em casa; pela falta de rigor eclesiástico e abundância blasfémia.

Foi por conta dessa revelação que Romualdo fundou a Igreja da Submissão ao Cânone da Palavra, que chefia, gere e é o único membro admitido.

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 38 - Emanuel Lomelino

16-07-2023


É preciso abrir os olhos, para lá dos limites da fisionomia, para avistarmos tudo aquilo que, pintado com as cores da nossa inocência, nada mais é do que engodo e simulação.

É preciso ver além do alcance da vista para entendermos como estes espectros furtivos, que nos iludem na invisibilidade das intensões, são seres de carácter pérfido, dissimulado, vil.

É preciso atenção microscópica e redobrada para entendermos quão elásticas (como interesseiras) são as aproximações que nos fazem, dependendo da utilidade, ou falta dela, que nos outorgam.

É preciso dar uso a toda a prudência, que a natureza nos emprestou, para sabermos quando sugam o ar que nos mantém ou sopram o veneno que nos intoxica, como insecticida.

É preciso reparar que, quase sempre, os benefícios de um ombro, que vislumbramos como gesto puro e sincero, são maçãs armadilhadas de gentileza encantatória e enganadora.

É preciso enxergar para lá do horizonte mais próximo e observar a distância mais remota para vermos com clareza o quão camufladas são as pretensões daqueles que, com vozes sussurradas, nos entoam aos ouvidos cantos de sereia.

domingo, 20 de julho de 2025

Pensamentos literários 38 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 


38


Quando os pensamentos querem ser vistos transfiro-os para um suporte e visto-os de palavras. Essas dão os braços, umas às outras, como numa roda de dança, e fluem a seu belo prazer sem a minha intervenção.

No início, na inocência do meu desconhecimento, mal se expunham, tentava dar-lhes um sentido mais legível, mas esse processo acabava, inevitavelmente, por lhes cortar o fluxo e, o que era uma ideia sólida, diluía-se no tempo com a busca da alternativa de discurso e perdia a força da mensagem base.

Com o tempo, e a experiência, aprendi a ser paciente e comecei a esperar o fim da transição para depois, então, fazer as alterações necessárias.

É por isso que, mais do que escrever, gosto da transpiração de limar verbos, raspar pontuação, desbastar complementos, cinzelar advérbios, polir sentenças.

E se me perguntarem a razão deste trabalho eu respondo que o meu cérebro é disléxico e tem sempre muita dificuldade em estar sincronizado com os pensamentos que lê.

sábado, 19 de julho de 2025

Prosas de tédio e fastio 77 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


77


O dia voou-se-me pelos dedos com a fúria premeditada de lâminas rombas. As mãos choraram desconforto enquanto a alma – essa eterna chaga tresmalhada – regozijou-se por não ser corpórea e celebrou a sua indiferença ao beliscar do físico.

Os segundos latejaram-me na pele; os minutos picaram o ponto; as horas cauterizaram os sulcos, infamemente, enfaixados com gaze inexistente. E ela – a alma arredada de empatia – manteve-se fiel ao seu umbigo narcisista.

A tarde sucedeu à manhã, como é habitual nestas coisas do tempo, e a cada tique-taque da ampulheta moderna mais rugas decidiram enfeitar-me a derme irritada de poeira e sedenta de tréguas. Da outra – a alma desgarrada de afinidades – nem um sopro refrescante de interesse ou sinal de afectação.

Foi apenas mais um dia que passou. O corpo ganhou umas quantas medalhas por continuar a superar etapas, enquanto a alma – vilã de si mesma – permanece na ignorância de que nada, nem ninguém, é imune à passagem do tempo e que este também se lhe aplica.

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Devaneios sarcásticos 24 - Emanuel Lomelino

Devaneios sarcásticos 


24


Os dias tecem-se como macramé. Entrelaçam-se os nós à velocidade dos ponteiros, e a estética nunca é ditada pelo tecelão, mas sempre pelos fios do tempo. Os minutos são franjas e as horas urdem-se de forma aleatória, porém harmoniosa.

Hoje teci um dia pardo, entre refeições. Quis Aracne – deusa do ofício –, de porte altivo, como todas as divindades devem apresentar-se, que o padrão das pausas, para descansar as mãos doridas de tantas agulhadas, fosse obtuso, contudo geométrico. E os desenhos de mais um dia ficaram-me tatuados na pele.

A minha sorte é ter esta obsessão redundante pela etimologia das palavras e descobrir que, ao contrário de todos os “dejá vu” deste dia, macramé não tem origem francesa, antes árabe “migramah”, ou talvez do turco (língua aliada) “miskrama”.

Seja como for, assim que a noite se predispuser a embalar-me as escaras, enrolar-me-ei na tecelagem deste dia e dormirei na certeza de que na próxima alvorada serei artesão de outra arte qualquer.

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Pensamentos literários 37 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 


37


Durante anos, por acreditar que a escrita é, mais do que um direito, um dever, e a ninguém deve ser retirada a possibilidade de o fazer, tive dificuldade em entender uma das frases mais icónicas de Saramago, em que ele considerava ser um crime continuar a escrever não havendo mais nada a dizer.

Rebati essa afirmação por ser apologista de que a escrita, independentemente do conteúdo, mesmo vazia e isenta de propósito literário, é um instrumento válido para a literacia e desenvolvimento intelectual das sociedades.

Mas, como muitas vezes acontece na minha vida, só mais tarde, ao ler uma entrevista de Bukowski, onde ele afirma que é preferível não fazer nada do que fazer as coisas mal feitas, explicando que o grau de autoconfiança dos maus autores iguala o grau de incerteza dos bons autores (algo que pude confirmar em diversas ocasiões) e, por esse motivo, os primeiros são mais requisitados para darem palestras, quase sempre enfadonhas como a sua escrita, para plateias compostas, essencialmente, por outros maus autores, esperançosos em serem os próximos palestrantes, é que consegui enxergar a profundidade da sentença no Nobel português.

Nesse momento de epifania, ao entender que ambos os ícones da literatura, embora distintos, tinham a mesma linha de raciocínio - um mais polido (Bukowski) outro mais cru (Saramago) -, passei a acreditar ainda mais que a escrita é um dever de todos, mas isso não significa que todos tenham direito a verem-se escritores.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Prosas de tédio e fastio 76 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


76


Quando a mente é acometida pela tempestade do questionamento as dúvidas relampejam, antecedendo o trovejar das perguntas mais estrondosas.

Há uma energia voltaica que eriça a curiosidade e chove uma urgência de respostas definitivas, como se os ventos da tormenta acalmassem às primeiras gotas de sabedoria.

Nesses momentos de intempérie não existem boias de conhecimento que ajudem a flutuar nas marés da ignorância nem botes de erudição à prova de tsunamis docentes.

À falta de solução para amainar o temporal, o melhor a fazer é navegar ao sabor da corrente e esperar que as ondas de interesse sejam atenuadas a cada nova conclusão, na esperança de não sermos empurrados para um porto rochoso e ter de enfrentar outro género de desafio mental.

terça-feira, 15 de julho de 2025

Prosas de tédio e fastio 75 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


75


Quando os passos se tornam um fardo pesado, a mente, incoerente como só ela, afasta-se ainda mais do corpóreo e abraça o caos das ideias, como quem só consegue cumprir-se na desordem.

Então, num caleidoscópio de propósitos e desígnios emaranhados, surge o alheamento às mazelas do corpo e respirar volta a ser um gesto sem aflição.

Todos os hematomas, cicatrizes e feridas abertas transformam-se em galardões impessoais, como se, num golpe de mágica, os ardores e agonias dolorosas ganhassem a virtude da insensibilidade.

Os horizontes deixam de ser distância angustiante e invertem-se as prioridades – os sonhos dissipam-se e a verdade está nos detalhes do impalpável.

O tempo perde o brilho. A realidade é difusa. As pálpebras são cortinas. As vozes esfumam-se. O bocejo solta-se. E por fim adormeço anestesiado por esta esquizofrenia jazzística.

segunda-feira, 14 de julho de 2025

Prosas de tédio e fastio 74 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


74


Resisto ao desespero de ver-me despetalar por estes ventos raivosos que cismaram na minha erosão permanente.

A mente, que por vezes despede-se de mim, tende a ganhar sulcos áridos, com o simples propósito de transformar as ideias em desertos ásperos, onde predominam as sombras que detonam quaisquer certezas que a vida me tenha emprestado.

É no seio de uma lucidez dúbia que questiono as horas céleres, os passos enviesados, as plantas rasas, os voos dos pelicanos e aquele sentimento inútil de estar a ver os navios passarem, sem rumo nem porto pré-definidos.

Os horizontes ocultam-se numa penumbra de vozes contraditórias e há línguas de fogo em cada encruzilhada, dificultando a passagem, seja qual for o caminho escolhido, como se todas as direcções levassem ao mesmo mar de lava e desfortúnio.

O destino é um fardo afastado do entendimento lógico.

domingo, 13 de julho de 2025

Prosas de tédio e fastio 73 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


73


Todas as manhãs, aos primeiros raios de sol, amanhece-me uma revolta sufocada cujos sintomas são precações murmuradas e súplicas heréticas.

Estas sublevações mentais vespertinas nada mais são do que gritos rebeldes e contestatários pela contínua repetição dos dias, que nascem, correm e terminam sempre da mesma forma como fazendo parte de um looping infinito.

Mas este espírito amotinado peca pela incoerência porque a génese da insurreição é a mesma que suporta a via alternativa.

O problema que transtorna o âmago não existiria se a rotina fosse outra; se o rácio entre ónus e bónus fosse distinto; se as horas de responsabilidade não esmagassem as de placidez; se o tempo não se espartilhasse entre obrigações e deveres; se a respiração fosse compassada e não houvesse sangue, suor e lágrimas…

Enfim… as coisas são como são e amanhã, quando o sol raiar, cá estarei para sussurrar, entre dentes, mais alguns jargões e preces ofensivas, porque pior do que ter uma rotina indesejada é não ter rotina alguma.

sábado, 12 de julho de 2025

Pensamentos literários 36 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 


36


Os bons livros nunca são aqueles cujo enredo, a trama, ou a estória, são construídos na perfeição da lógica. Tampouco são aqueles em que o sol sempre brilha ou a chuva é louvor.

Um bom livro é aquele que incomoda, que incendeia os pensamentos, que agita o solo que pisamos, que estupra a mente deixando sementes de incógnita e desconforto.

Um bom livro é aquele que dá raiva, que inflama os sentidos, que provoca terramotos emocionais, que nos faz duvidar de todos os dogmas e acreditar que é utópico pensar em utopias.

Um bom livro é aquele que enfurece, que queima as pálpebras, que abala todos os alicerces, que nos chocalha de forma intermitente, que nos sacode a alma com violência.

Um bom livro é aquele que desperta as nossas sombras mais profundas, que faz brotar luz nas trevas do nosso ser, sem tabus nem condicionantes.

Um bom livro é aquele que nos revolta, que nos engessa, que nos decapita, que nos mutila, mas mesmo assim liberta-nos do fastio, da mesmice e das masmorras da ignorância.

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 37 - Emanuel Lomelino

30-06-2024


Ei-los, os prisioneiros do infortúnio que deixaram de ver quando colocaram as vendas costuradas pelas próprias mãos e insistem na inocência, outorgando todos os delitos a terceiros.

Ei-los a marchar altivos nas suas algemas de sofrimento reptiliano, com lágrimas insonsas e esgares lamuriosos copiados de folhetins radiofónicos.

Vejam quão intensas são as improvisações cénicas, com gestos eloquentemente fátuos de exagero, gritos estridentes de vergonha alguma e prantos de vexame enlameado.

Vejam como se amontoam nos muros da choradeira e alardeiam em danças uníssonas os seus pesares comuns, como insectos a comunicar novos lugares de colheita.

Ah, essas vítimas de culpa alheia que sofrem nos labirintos da comiseração enquanto apontam o indicador em todas as direcções esquecendo-se de observar os outros dedos.

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Prosas de tédio e fastio 72 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


72


Soltam-se as plumas da noite e a lua – porta-estandarte de todos os astros – deixa-se ver no máximo expoente das suas crateras, como quem exibe umbigos e brotos. E nem a obscuridade dos cúmulos noturnos lhe retira o brilho emprestado.

Na sua nudez aristocrática e presunçosa derrama uma áurea hipnótica, quase magnética, que cativa os uivos caninos, o trinar das guitarras e os apetites canalhas dos malandros mais ousados.

Também os gatos, felinos com refletores nos olhos, demonstram boémia ao luar e por isso fazem dos telhados os seus lugares de eleição para escrutinarem eventuais descuidos de roedores audazes, juntando-se, assim, às corujas de olho grande e aos morcegos acrobatas.

E quando os aspersores molham os jardins, a horas fora-de-horas, são mais os sonos consumados do que as insónias imprevistas ou propositadas, e os pirilampos – quais vigilantes de turno – iluminam os caminhos aos louva-deus e às formigas que perderam a noção do tempo, por terem preferido assistir ao concerto integral das cigarras vagabundas.

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Pensamentos literários 35 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 


35


Os escritores são seres camaleónicos, quase trapezistas, que deambulam, em equilíbrio precário, na ténue linha que separa a realidade da ficção.

Tanto vestem as suas cores como outras peles, de acordo com a sensibilidade que têm ou desejariam ter, numa busca incessante da perfeição que sabem não existir.

Percorrem trilhos de convicção, por vezes contrária aos seus princípios morais, apenas para dar humanismo às suas letras e ficarem mais próximos das verdades daqueles que os leem.

Os escritores são personagens com múltiplas caras e outras tantas esquizofrenias, em benefício da criação, em nome da obra, em prol da literatura, em proveito próprio.

Afirmo. Por mais que se consigam interpretar os textos, é impossível conhecer um escritor através das palavras. Até se pode identificar a origem de algumas feridas ou detectar cicatrizes, mas nunca a essência das escaras.

terça-feira, 8 de julho de 2025

Prosas de tédio e fastio 71 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


71


Esgotou-se-me o sono, como acontece em todas as madrugadas de preguiça, e fico aqui, estaticamente deitado, a observar o silêncio aleatório da noite alta.

Na fluorescência dos pensamentos, que roem as sobras da modorra corporal, dou por mim a vaguear entre sonhos esbatidos, convicções dormentes, desejos impertinentes, certezas dúbias e outras leviandades do espírito, que só o próprio poderia explicar se fosse essa a sua vontade (que nunca é).

No meio desta sessão de tramas tão absurdas quanto despropositadas – porque a clareza das ideias nocturnas hão de esbater-se nos labirintos do mundo real – oiço o início da sinfonia piadora das aves, empoleiradas nos inexpressivos salgueiros, como estivessem a culpar-me pela sua insónia.

Abeiro-me da janela e solto um chiu mental para não acordar a vizinhança, e os pássaros, que parecem entender-me durante meio segundo, regressam às suas reclamações chilreadoras com vigor redobrado.

Perante a insolência canora, volto ao leito que esfria e sou esbofeteado pelo único pensamento lúcido que os primeiros raios solares iluminam: ainda estou de estômago vazio.

segunda-feira, 7 de julho de 2025

Prosas de tédio e fastio 70 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


70


Afastei-me do mundo na consciência deste egoísmo que conservo, nas coisas que me são próximas, nas ideias que me motivam, na defesa de um legado (que também carrego nos ombros, em virtude de uma paixão autoalimentada, à base de crença e platonismo assumido).

Afastei-me do mundo na convicção deste interesse que mantenho, na paz do silêncio, na tranquilidade da reflexão, no apego ao equilíbrio emocional, na estima pela herança imaterial deixada por literatos coerentes, cujas palavras (leia-se obras) conseguiram, de alguma forma, indicar-me os caminhos a percorrer até encontrar a minha voz literária.

Afastei-me do mundo para deixar de sentir incómodo pela postura ébria e circense das letras contemporâneas, que apenas existem porque as luzes e ribalta anarquizaram-se em nome de uma originalidade desordenada, que nada mais é do que oposição aos clássicos por evidente falta de capacidade inovadora.

Afastei-me do mundo, simplesmente, porque o mundo nada me diz, eu já disse tudo o que havia para dizer, e agora apeguei-me a este outro mundo que tenho entre mãos.