sábado, 24 de maio de 2025

Devaneios sarcásticos 18 - Emanuel Lomelino

Devaneios sarcásticos 


18


Dou por mim a pensar no quão estranho é a ideia de sermos ímpares no universo. De não haver outro lugar com o mesmo género de beleza natural que desfrutamos aqui, neste nosso planeta solar.

Quão bizarro é o conceito de habitarmos o único espaço com as características da Terra, sabendo que o cosmos é composto por uma infinitude de geologias.

As dúvidas e questionamentos atropelam-se na mente e, de hipótese em hipótese, o grau de aleatoriedade chega a parâmetros inenarráveis.

No meio das incertezas brota a esperança de que todo o conceito que envolve a nossa singularidade seja falho e, noutro qualquer ponto de qualquer galáxia, existam mais Terras habitadas, mas com melhor exploração das capacidades intelectuais.

Se for para ser igual nos defeitos, é mil vezes preferível sermos o único aborto cósmico.

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 52 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


52


Embrulhado no desconforto agudo de mais uma manhã, observo o envelhecimento acelerado das mãos e sinto as correntes enfurecidas dos rios que pulsam em cada uma das veias, como houvesse uma urgência líquida a irrigar os novos desfiladeiros da pele.

Por momentos vejo a geografia dos poros e as contrações dermatológicas são proporcionais à assustadora dilatação obtusa dos dedos – gigantes cansados e doloridos – que gritam sensibilidade e incómodo.

Esfrego os mapas nascidos nas palmas, numa tentativa vã de acender novos focos de resistência, mas o calor emanado simplesmente serve para confirmar a perda de capacidade hermética causada pelas calosidades dos dias e pela erupção vulcânica das escaras que enfurecem à primeira fricção.

Neste processo descubro que as mãos já não servem para guardar segredos nem para fazer truques de magia.

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Devaneios sarcásticos 17 - Emanuel Lomelino

Devaneios sarcásticos 


17


Dá-me graça assistir, desta poltrona sem foco, à modéstia exibicionista de alguns pseudoautores que, com penas sem tinta e lavras emprestadas, passam por ícones imaculados e assertivos.

A história repete-se, em círculos herméticos, com discursos de ocasião, cheios de frases batidas em castelo e clichês feitos por encomenda.

Por muito penoso que seja, não sobra alternativa que não passe por parabenizar, estes arautos da comunicação, pela ousadia e confiança com que fabricam os seus currículos, repletos de valências nuas de significado e importância, mas que, aos olhos dos beijadores de rabos, chegam como bacharelatos.

Há que dar mérito a quem, apesar dos engodos e falinhas mansas, enchem salas de iludidos e os bolsos de celebridade.

Tudo o resto é rodapé de outras prosas sem holofotes.

quarta-feira, 21 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 51 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


51


As palavras soam a pombas brancas quando flutuam no encanto do olhar lacrimejante. Um arco-íris espalha a magia colorida do sentimento fervente. Soltam-se odes melodiosas, qual sinfonia celestial. O tempo desacelera. O entorno deixa de existir. Os raios de sol ocultam-se. O mundo para.

As preces vagueiam entre o pedido de absolvição e a necessidade de bênção, como se o clamor das frases feitas tivesse o poder de apagar memórias, escaras e elos quebrados. Nas sombras, há um desfilar de dedos e teias de aranha. A presença obscura de arrelias, vacuidade e déjà vu são parcelas de uma equação com resultado previsível. Há o afloramento de histórias caducas que ressuscitam futilidades e destapam embalagens vazias. Depois temos as fábulas de um só sentido – sem sentido – com moral desenquadrada da realidade.

O céu fica cinzento e verte, gota a gota, cada nota de um fado enviesado e sem remorso, como fosse conduzido na plenitude de uma embriaguez vadia. Calam-se as guitarras. Mutam-se as vozes. Silencia-se a vontade.

terça-feira, 20 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 50 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


50


Somos seres de humores e, por isso, cada momento é irrepetível, porque específico. Por mais que se recriem ambientes e condições, dificilmente conseguimos repetir sensações.

À partida, esta constatação parece inabalável pelas verdades que encerra. No entanto, prestando atenção, verificamos que no seu conteúdo esconde-se um paradoxo.

Se, por um lado, é muito difícil que as nossas acções resultem sempre da mesma forma, levando-nos a vivenciar o mesmo grau de euforia, por outro, como se explica que a insistência numa determinada atitude resulte sempre na mesma insatisfação?

Tendo refletido neste paradoxo, cheguei a uma única conclusão: a tese da irrepetibilidade só é aplicável às boas sensações. Nas nefastas, a repetição resultará sempre em algo negativo. O mesmo é dizer que as boas sensações são uma paleta muita vasta e variável, enquanto um mau momento será sempre um mau momento.

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 49 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


49


Apesar dos queixumes – porque os gritos, mesmo em silêncio, têm o condão de aliviar a carga negativa que transportamos nos ombros – descubro-me imune aos contratempos da vida.

A apatia, a inércia, o modo impassível, que me outorgam, como etiquetas tatuadas, revelam o quão falsos são os diagnósticos quando sou analisado com critérios que nunca forma meus e pelos quais nunca me regi.

A vida ensinou-me a não criar expectativas sobre ela própria e a seguir sempre em frente, independentemente das circunstâncias e das consequências, com a cabeça erguida e sem olhar para o que foi, o que teria sido, o que podia ser, ou, para aquilo que será.

A lição maior é simples de entender. A vida jamais será uma conjugação verbal e deve ser vivida, apenas e só, pelo que é.

domingo, 18 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 48 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


48


É triste viver num mundo que nos pinta com a tinta de deturpação, dando à essência de cada um tonalidades disformes fora de contexto.

Quem for organizado é taxado de obsessivo, quem não for é desleixado. Aqueles que meditam e refletem antes de agirem são perversos ou desconfiados, já quem age por impulso é irresponsável. Os que dão uso à disciplina vivem presos na rotina, os que prescindem dela são rebeldes. Os assíduos e pontuais são chamados de rígidos ou severos, quem falta ou chega atrasado é libertino negligente. Os introvertidos são vistos como antissociais, os extrovertidos são chamados de loucos.

Mas o mais inquietante é ver que a maioria não consegue viver a sua essência e tem os armários repletos de máscaras para usar de acordo com as circunstâncias.

Depois estranham aqueles que se afastam e viram eremitas!

sábado, 17 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 47 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


47


A praia esvazia-se de olhos postos nas pranchas que deslizam na ondulação costeira, enquanto, na barra, as traineiras são preparadas para a faina, assim que terminar o pôr-do-sol.

As mulheres de negro aglomeram-se no pontão para sacudir os lenços brancos, na angústia dos céus carregados, na incerteza eterna dos ventos e na esperança do retorno breve.

O farol ilumina a liquidez da noite, mas o horizonte fica escondido entre a penumbra e a maresia. O ambiente sepulcral só não é total porque as águas martelam a vulnerabilidade das embarcações ao ritmo das preces afãs.

Às ondas do mar pouco importa se os grãos de areia fina já foram, um dia, seixos lisos ou se as gaivotas poisam para palitar os bicos nas conchas abandonadas. Tampouco querem saber se as estrelas-do-mar são incendiárias jurássicas a preparar terreno para outras espécies ou se, nessa noite, as redes serão capazes de expulsar a fome.

sexta-feira, 16 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 46 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


46


Passa mais um dia de vento no estendal e os pombos, quais pintores alucinados, pincelam a roupa lavada de fresco com as suas incontinências tão pérfidas quanto certeiras.

Olho o resultado Van Goghiano e penso estar diante de uma metáfora pulsante e tridimensional da existência – talvez a minha, talvez a de muita outra gente.

Recolho aquelas artes abstratas sem saber se devo reciclar o asseio pós-lavagem ou emoldurar tudo para fazer uma exposição, como aquela que vi, na minha adolescência, num jardim de Óbidos, e reclamar para mim a autoria. Não são muito diferentes.

Mas a dúvida é um fragmento temporal que se extingue quando penso no que iria gastar nos caixilhos. Prefiro a exorbitância do detergente – como está caro! – e desafiar a sorte reiniciando o programa de limpeza.

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 45 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


45


Tudo começou com o trovejar dos bombos seguido de um choro colectivo dos violinos, primeiro sussurrado, depois bradado. Só depois o clarinete buzinou uma passagem de nível e as colinas deixaram-se florir numa sinfonia de cores exóticas.

Houve uma vertigem zumbida que polinizou um dente-de-leão e as glicínias olharam o céu em prece pedindo, aos deuses florais, permissão para o regresso dos colibris.

A mariposa sacudiu a transparência das asas para receber a simpatia da brisa e serpentear entre as peónias bailarinas.

As campainhas tocaram triângulos a compasso e o salgueiro-chorão aproximou-se do rio para ver, mais próximo, a família de carpas-dragão que manchava a serenidade cristalina das águas.

O pica-pau trauteou morse no tronco rijo de uma laranjeira e a orquestra edílica deu lugar ao silêncio absoluto porque apareceu uma mochila a empurrar um ser bípede que estava noutra sintonia e decapitava margaridas.

quarta-feira, 14 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 44 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


44


Sim, aos poucos têm-se evaporado os nenúfares e pintarroxos da criação para darem espaço aos gumes afiados das pedras enegrecidas pelas vaidosas fogueiras, alimentadas de toros vulgares, que pululam neste novo desenho de intenções.

Mergulha-se a autonomia expressiva dos voos livres nas masmorras do convencional e os arco-íris são engavetados nas sombras dos profetas eleitos pela unanimidade da preguiça, que graça nos bustos esculpidos pela ignorância.

Assim perecem os fios do irrepetível e nasce a pura absolvição dos espelhos, para contentamento dos usurpadores de ideias que usam sapatos largos e luzes ofuscantes.

Este é um tempo raso que flui, na precipitação do seu descaso enraizado, como um rio daninho que oferece lodo às margens e ceifa, dos salgueiros, a seiva que não precisa nem merece.

terça-feira, 13 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 43 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


43


Juro que tento ressuscitar em algumas mortes, mas é difícil devolver a vida a raízes que passaram por impiedosa trituração.

Deixou de haver remédio para colmatar o desconforto provocado pelos engodos permanentes e intencionais. Já não existe antídoto para os embustes perversos. Tampouco há milagre que inverta a falsidade hipocondríaca.

As compressões no peito já não desobstruem os incómodos pérfidos originados pelas frases feitas, lugares-comuns e puxões de tapete.

Nem a manobra de Heimlich consegue desengasgar-me as goelas dos sapos, viscosos e intragáveis, que tentei engolir na crença esperançosa de novos horizontes.

Assim, por razão de sanidade mental e para evitar a putrefação de todos os sentidos, deixei de perder tempo em reanimações e sou mais célere na confirmação dos óbitos em mim.

segunda-feira, 12 de maio de 2025

Pensamentos literários 25 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 


25


As dores deixaram de ser passageiras e as sílabas tónicas jamais serão analgésicos para a contemporaneidade.

Por mais pensadas que sejam as frases, a criatividade é um ente falecido por excesso de penas ocas.

Há um movimento de passadeira boémia tão ébrio quanto uma reunião de enólogos descredibilizados e os rótulos estão fora de validade para safras novas.

A mesmice é uma obstinação desta época, sem contrastes, como fosse sinónimo de capricho bafiento.

Há uma tendência autofágica que amputa o simples porque as manchetes da moda requerem odes à vulgaridade.

Valha-nos o santo papel reciclado.

domingo, 11 de maio de 2025

Devaneios sarcásticos 16 - Emanuel Lomelino

Devaneios sarcásticos 


16


Na penumbra dos becos, os tijolos quebrados são testemunhas assíduas das vidas que se cruzam, entre pestilências, azares e necessidades, regadas a vícios e adições.

Abrem-se pernas e goelas ébrias, em rituais de praxe mundana, enquanto roedores e varejeiras, alheios aos marujos caídos e carochos ressacados, procuram as águas-furtadas de um contentor chamariz.

As sombras são armários onde os cobardes aconchegam as vertigens, os corcundas ganham linearidade, as pegas aliciam sob pressão de lâminas e chumbo, e os vasilhames dividem espaço com latex e filtros alcatroados.

No aconchego da escuridão noturna, os corretores de fumo e caldo especulam piercings, ao ritmo dos batuques abafados que saem das caves guardadas por adoradores de halteres.

Há um gato que mia, um caixote remexido, um pneu que derrapa, um copo que se estilhaça, um isqueiro que é acendido, um rosto que se ilumina, uma baforada que se cheira, um tumulto que se gera, um grito que se escuta, um vulto que tomba, uma poça que se forma, passos que fogem e o silêncio cúmplice que nada viu ou ouviu.

sábado, 10 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 42 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


42


Quando a Tília oferece os seus botões ao mundo, o ar fica impregnado pelo cheiro de renovação, que nem as águas choradas tardiamente conseguem disfarçar.

O vento assobia uma valsa, apenas bailada pelas alvas gaivotas desnorteadas e alguns pardais zombeteiros, que ainda não esqueceram a fábula de João Capelo e insuflam as plumas negras.

Há um grilo cantor a imitar cigarras roucas enquanto as formigas regressam, impávidas e indiferentes à cantoria, à sua vidinha de sempre sob o olhar guloso dos piscos e lagartixas que tomam banhos de sol.

O jardim verdejante é patrulhado por dois gatos vadios que desejam encontrar um pombo distraído ou um roedor imprudente, sem deixarem de ter um olho na refeição e outro em alerta canídeo.

Tudo isto acontece, entre calçadas, nas margens do movimentado asfalto, onde a vertigem é prioridade e os insectos atropelam para-brisas e olhos nus.

sexta-feira, 9 de maio de 2025

Pensamentos literários 24 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 


24


Inflamam-se-me os genes da revolta quando os meus sentidos são atingidos pela imodéstia dos autodenominados vates da modernidade, que nem sequer sabem a diferença entre estrofe e estância, confundem haiku, tanka, limerick e poetrix, desconhecem o tautograma, fazem glosas sem mote, não sabem distinguir estruturalmente um soneto inglês de um italiano, de um monostrófico nem de um estrambótico e, valha-me Nossa Senhora da Língua Portuguesa, chamam acrónimos aos acrósticos.

Não se pede que todos saibam escrever odes, éclogas, elegias ou vilancetes. Tampouco se exige lirismo ou erudição específica, no entanto, saber identificar redondilhas, diferenciar trovas, canções ou baladas, não seria despiciente.

O que mais dói é conhecer alguns que até sabem muito do ofício, mas deambulam no universo da escrita com complacência pela ignorância colectiva, limitando-se ao silêncio por medo de perderem aplausos se mostrarem conhecimento acima da média.

Embora a voz deste burro não chegue ao céu, continuarei a afirmar que a maioria não sabe a diferença entre verso livre e prosa poética e que poesia e poema são duas coisas distintas.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 32 - Emanuel Lomelino

07-04-2024


Por mais incompreensível que possa parecer, todos os silêncios têm um discurso acoplado e as asas das borboletas ficam mais fortes a cada batimento.

Nem todas as percepções correspondem à verdade dos factos e os hologramas, antes de serem avanço tecnológico, já faziam parte da vertente ficcional das prosas enxeridas e abelhudas.

Não esqueçamos que as pedras podem virar pó e este transforma-se em barro ou lama, dependendo da quantidade de água derramada.

Depois temos o vento que, num ápice reptílico, passa da carícia ao empurrão e tanto pode acelerar o passo como soprar contracorrente.

E santos são os caules espinhosos das rosas e os ferrões das vespas, menos perigosos do que os lábios famintos de qualquer drosera.

E tantas outras metáforas poderiam ser usadas para referir que há demasiada gente dissimulada e adepta da má-língua, da bisbilhotice, da difamação, da intriga e do falso-testemunho.

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Ao pé-da-letra 7 - Emanuel Lomelino

Ao pé-da-letra 


7


Quisera ser tempestade ribombante para, com a luminosidade dos raios e rouquidão dos trovões, atormentar as dualidades das marés lunares.

Quisera ser vulcão e cuspir rios de lava abrasadora sobre as vulnerabilidades infundadas que, quais etiquetas inamovíveis, falsamente denigrem o carácter mais brando e casto.

Quisera ter a acidez vernácula para combater a violência covarde de quem se esconde nas sombras do anonimato e depois passeia, altivo e de saltos altos, nas vergonhosas passadeiras vermelhas do engodo.

Quisera ter todos os verbos à flor da pele para, com a língua afiada, romper a brandura dos discursos, chamar os bois pelos nomes e colocar os pontos nos “is”.

terça-feira, 6 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 41 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


41


Reconheço a precaridade dos meus passos e as responsabilidades alheias que coloquei nas costas quando, eu próprio, sentia a necessidade de outras latitudes, outros encargos, mais sensatez.

Porventura, deixei-me ficar no lado de cá do horizonte por achar que escalar outros cumes seria um acto de egoísmo descabido e só conheci a indiferença depois de muitos sapatos gastos.

O discernimento conquista-se a conta-gotas e a consciência precisa ser destilada para que a razão venha à tona. Por isso, só agora, passado o equador da viagem, é que dei conta do caminho circular – para não dizer espiral – que tenho trilhado.

Arrependimentos! Na prática nenhum porque, instintivamente, nunca fui acumulador de tralhas e abandonei algum lastro basáltico nas margens do esquecimento. Mas não se aflijam os ambientalistas porque deixei tudo bem acondicionado em embalagens recicladas e nos respectivos aterros.

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Papaguear cultura 13 - Emanuel Lomelino

Papaguear cultura 


13


Os aforismos vivem e respiram em cada verso criado pelas almas noctívagas, sedentas por estancar silêncios e arruinar sossegos mentais.

As penas – nunca plumas – são torneiras abertas aos discursos atormentados, sem saberem que as tormentas maiores estão nos olhos da posteridade.

O maior sofrimento é sentido pela folha de papel por reciclar, por não ter história além daquela que lhe tatua o corpo em pigmentos desbotáveis e com prazo de validade.

Quanto ao vate… de pouco lhe serve o entendimento e um descodificador de ideias e processos porque tudo fica perdido na ausência de rasuras e notas de rodapé.

Mas, apesar de tudo ser efémero, desde a concepção até à fogueira, existem momentos de poesia que respondem às leis da natureza. Porque nada se perde, tudo se transforma e renova.

domingo, 4 de maio de 2025

Papaguear cultura 12 - Emanuel Lomelino

Papaguear cultura 


12


Os olhos, hipnotizados pela maré vazante, ficam presos no coração do Tejo que pulsa, indiferente às traineiras e aos voos das gaivotas, com espelhos a surfar na serena agitação, das suas águas turvas, provocada pelo rastro de um catamaran. Há uma brisa que beija os rostos transeuntes como que anestesiando-os do abraço solar, fora de época, e oferecendo a maresia como perfume de consolo e paz.

Ouve-se, ao longe, a banda-sonora indistinta saída da garganta rouca de um violão, acompanhada pela voz melodiosa, mas murmurada, de uma cantora gospel, que faz da rua o seu anfiteatro, junto a um malabarista de sapateado clássico.

Só falta um pintor, de tripé em riste e as mãos ocupadas com pincéis e uma paleta mais colorida do que o arco-íris, para que se forme o cenário perfeito: a natureza, ela própria uma obra de arte, rodeada de artesãos vários.

sábado, 3 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 40 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


40


Como não bastasse a densidade do bosque, com as suas altivas árvores de copas escuras e tão espessas que o sol não as trespassa, ainda se pôs este nevoeiro cerrado que cega o início do olhar.

Apenas ruído. Uma espécie de assombro canalha que gela pedras e raciocínio. Um tilintar indistinto, contudo macabro, fúnebre e tão encantatório como um coro de sereias à caça de náufragos.

O caminho, à margem das vespas e espinheiros, faz-se irregular, qual montanha-russa num parque de diversões devoluto.

Ouve-se o piar de uma coruja-das-torres e um indefinido restolhar, ténue e miúdo, tão rasteiro como uma subcave invisível, mas presente.

Subitamente, num passo de mágica, abre-se uma clareira tão larga quanto negra, como fosse o leito de uma gigantesca fogueira antiga, que oferece três trilhos. Um de seixos brancos e lisos de erosão, outro coberto por um tapete de folhagem calcada, o terceiro enlameado, íngreme e invadido por troncos tombados.

Os dois primeiros reentram no bosque. O último, menos convidativo, circunda a clareira e embica na direcção oposta. Por via das dúvidas, incorpora-se o espírito de Régio e segue-se adiante.

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Pensamentos literários 23 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 


23


Começam a faltar-me fórmulas para explicar o gosto pela leitura e o prazer de ler livros em catadupa.

Chamem-lhe obsessão, vício, dependência, mania, sede de conhecimento, paixão, até loucura. Aceito todos os epítetos com a mesma naturalidade com que passo de Celan para Agustina, de Tchekov para Sophia, de Quintana para Hatherly, de Camilo para Pasternak, de Orwell para Vergílio, de Márai para Torga, de Eugénio para Gógol, de Pessoa para Steinbeck, enfim, de livro para livro, sem olhar a filosofias, épocas, proveniências ou géneros literários.

Sou um bicho das letras auto enclausurado nas badanas de um mundo paralelo, por onde deambulo em busca de respostas às perguntas que nunca fiz porque, só assim, consigo justificar a esquizofrenia que me abraça e faz-me sentir, bem vincado no âmago, este desenquadramento temporal.

Ler transformou-se numa epopeia lúcida com o objectivo de afastar a angústia de estar onde não pertenço, nem quero estar, e descobrir o espaço e tempo onde poderia encaixar-me como uma peça de puzzle.

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 39 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


39


De nada serve abrandar ou ziguezaguear a vida por medo da morte. Fazê-lo é prescindir das cores que a primeira contém, substituindo-as pela beleza daltónica da segunda, sempre em tons esbatidos e duvidosos.

Não adianta colocar pé no travão da existência porque as pétalas do tempo não se comovem com o abrandamento do passo e seguem, flutuantes, rumo à finitude da sua queda.

Não há fontes de água-benta que impeçam o pólen de Hades de espalhar-se entre a humanidade e aumentar a sua colecção de almas.

Mais confortável é aceitar com naturalidade o fim assegurado, deixando-o navegar nos mares da ignorância, como quem espera o sorteio da lotaria sabendo que as hipóteses de ganhar são superiores a qualquer outra sorte.