quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

No fundo do baú 38 - Emanuel Lomelino

Não quero louvores porque os epítetos, que outrora significavam admiração e reverência, perderam o fulgor e tornaram-se adjectivos vulgares expelidos com interesses ocultos.

Não quero aplausos porque as salvas, que outrora significavam encanto e respeito, perderam o brilho e tornaram-se estampidos comuns musicados com intensões obscuras.

Não quero premiações porque as medalhas, que outrora significavam reconhecimento e cortesia, perderam o valor e tornaram-se insígnias outorgadas com conotações escarnecidas.

Prefiro as miradas silenciosas porque através dos olhares consigo ver a diferença entre as vénias sinceras e os galardões aparentes.

Prefiro os sinais discretos porque através dos gestos consigo ver a diferença entre as anuências puras e os falsos elogios.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

No fundo do baú 37 - Emanuel Lomelino

Não existem muitos estudos sobre a matéria e quase todos pecam pela escassez informativa, sendo pouco esclarecedores.

Não há consenso quanto à forma de classificar este género de transtorno porque a multiplicidade de sintomas não permite deduzir se estamos perante uma tendência patológica ou uma perturbação mental. Esta dificuldade deve-se ao facto de existirem diferentes graus de manifestação do fenómeno, sempre dependente de cada infectado.

Sabe-se que é um vício. Uma dependência incontrolável que, mesmo detectada precocemente, é difícil de combater porque a ciência, ao contrário do que fez com outras adições, ainda não conseguiu identificar uma origem concreta e universal. Os únicos factos comprovados são que, em nenhuma circunstância, e apesar de ser uma condição pandémica, não há casos de regressão, apenas de progressão, mas não se conhecem casos de mortalidade associada, logo, não tem características malignas.

Assim sendo, não existindo fármacos nem tratamentos paliativos específicos, recomenda-se que todos os adictos diagnosticados prossigam as suas vidas dentro da normalidade que a sua compulsão pela escrita permite, até que se descubra um antídoto.

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

No fundo do baú 36 - Emanuel Lomelino

Cansado de frases feitas e clichés de ocasião, o corpo embrulha-se em si mesmo e chora todas as dores – as que tem, as que sente, e as que estão por vir.

Nesse recolhimento não há verde nem outra cor qualquer que mascare a palidez da derme triste e dormente. Só escuridão absoluta e isenta de compaixão.

Assim retraído, procura defender-se das inclementes chuvas metafóricas e mordazes que não cessam de ferroar, como ponteiros no extremo da agudeza e perversidade.

Quanto mais se fecha, na sua redoma sem escudo, mais expostas ficam as cicatrizes que o abraçam, e mais abertas ficam as feridas que o retraem.

O processo repete-se tantas vezes que acaba por transformar-se num ciclo vicioso e o corpo cede ao inevitável, converte-se à dor instituída e deixa de sentir…

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

No fundo do baú 35 - Emanuel Lomelino

Hoje, a palavra escrita é a representação gráfica de alguns gritos presos na garganta; de alguns impropérios que não podem ser proferidos porque ainda há crianças acordadas; de algumas imprecações lamechas que não combinam com a linguística socialmente aceite.

Hoje, a palavra escrita é uma fuga silenciosa aos fantasmas que teimam em assombrar os ingénuos; aos enfadonhos oradores que não sabem a diferença entre os sinónimos poéticos de festa e plenário; aos inúmeros arrolhadores das plataformas digitais.

Hoje, a palavra escrita é a excessiva glorificação do silêncio; é a exaltação dos pensamentos mais mundanos e vulgares; é o elogio à criação narcisista – dispensável como a maionese numa salada de frutas.

Hoje, a palavra escrita não é um exercício catártico; uma purificação de alma e espírito; um exorcismo de angústias, desilusões, desesperos.

Amanhã, a palavra escrita simbolizará outras coisas – ainda bem – porque também os dias são todos diferentes e merecem ser descritos com as palavras que melhor se adequam à sua singularidade.

domingo, 30 de novembro de 2025

No fundo do baú 34 - Emanuel Lomelino

Nesta loucura de mim, reflexo das piscadelas de olho dos meus (apurados?) sentidos, cravo todos os verbos auxiliares de memória e construo uma história sem futuro, mas intemporal.

Como criador que sou (e me sinto?) abro o kamasutra de possibilidades ilimitadas do estro (se o tenho!) e desenho a inconveniente postura de um adjectivo concreto, para expurgar o iodo das sentenças enfermas e, assim, eliminar a linha condutora dos raciocínios exactos que me invadem.

Enquanto autor de incoerências e paradoxos redundantes, mergulho na liquidez de um pensamento firme e dou-lhe características plásticas, como quem mastiga a dor de uma revelação insonsa - de cuja falta de encanto pode germinar a frase mais contundente e acintosa.

Há propósito nos casamentos que imponho às palavras porque de nada servem as solteiras, prenhes de solidão gramatical e mais susceptíveis ao embuste e ao narcisismo.

Acredito na desformatação das fórmulas e no aniquilamento do óbvio (advérbios e derivações!) em detrimento – que não substituição – dos recursos assessórios, que não os simples e básicos, porque essenciais e necessários.

Creio na encriptação metafórica e na irónica exploração dos verbos regulares, como quem personifica uma multitude de gestos comprometedores.

Por isso, todos os meus textos podem ser explicados numa única e definitiva frase, quando não por apenas uma singela palavra.

sábado, 29 de novembro de 2025

Contos que nada contam 50 (Natureza absurda) - Emanuel Lomelino

Natureza absurda


Deambulando pelos trilhos da irrealidade, onde os céus alaranjados são rasgados pelas asas de criaturas fantásticas, mas nada aladas, as pedras sussurram peregrinações e as flores espirram alergias a cada gota de orvalho.

Os caminhos são percorridos em marcha lenta, quando não em ré, tal como as águas dos rios que fogem das tropelias dos oceanos grávidos e se infiltram nas margens salgadas pelo suor de sargaços em crise de identidade.

As árvores dos pomares têm os ramos entrelaçados e os abelhões de barro esculpem castanhas piladas no coração das trepadeiras para que as formigas de barriga vazia encham o bandulho antes que a orquestra de cigarras, grilos e pirilampos inicie mais uma demonstração psicadélica de artes conjuntas sem fins lucrativos.

Assistindo a toda esta cornucópia de absurdos, como uma criança a olhar um caleidoscópio, está um homem, armado até aos dentes, que se perdeu quando tentava encontrar uma espingardaria para se abastecer de munições a tempo do início da próxima guerra.

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

No fundo do baú 33 - EmanueL Lomelino

Ao contrário de todos os outros sentimentos, acho que o medo ainda me espera no inesperado.

Não tenho medo de répteis, roedores ou gosmas, apenas asco e repugnância. Não tenho medo de agulhas, ou outros instrumentos pontiagudos.

Não tenho medo da solidão porque a procuro. Não tenho medo do vazio porque me preencho. Não tenho medo do escuro porque me atrai. Não tenho medo de gritos porque os ignoro. Não tenho medo de falinhas mansas porque desconfio. Não tenho medo de traições porque as sinto. Não tenho medo da desilusão porque prevejo. Não tenho medo do futuro nem da morte porque os desconheço.

Não tenho medo de monstros, bestas, feitiços, crenças, seitas ou outras criações fantasiosas da humanidade porque também as sei criar.

Tenho vertigens, mas nunca me recuso subir ao penhasco mais alto e íngreme porque sou combativo mesmo sentindo angústia e desconforto.

Dizem que o medo dá arrepios, também a febre. Dizem que o medo faz tremer, também o frio. Dizem que o medo faz suar, também o ginásio. Dizem que o medo deixa a garganta seca, também a sede. Dizem que o medo dá nós no estômago, também a fome. Dizem que o medo gera apreensão, também a pobreza. Dizem que o medo causa ansiedade, também as drogas. Dizem que o medo acorda os sentidos, também o sexo. Dizem que o medo origina desconfiança, também a política. Dizem que o medo provoca lágrimas, também a cebola. Dizem que o medo assusta, também eu.

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

No fundo do baú 32 - Emanuel Lomelino

O útero foi fecundado, num ato de amor casto e inocente, com a esperança de ser a génese de uma nova realidade, plena, lúcida, feliz.

Mas os conceitos embrionários não têm correspondência nas atitudes progenitoras.  Todas as regras criadas são apenas para enfeitar. Os princípios morais não são para seguir. Os novos hábitos e comportamentos são meras figuras de retórica. As imposições jamais se cumprem. O respeito exigido não se dá. E a cegueira do obstetra de serviço impede que se diagnostique uma gravidez de risco.

Quando o parto acontece, todos aplaudem e celebram o rebento. Ninguém duvida da paternidade, mas também não reconhecem os traços da ascendência. Instala-se um silêncio inquisitivo e uma ânsia contempladora, mas há felicidade nos rostos.

A inocência infantojuvenil depressa se transforma em arrogância e prepotência, de forma tão natural quanto previsível. Dizem que é sinal dos novos tempos e, com o contágio da cegueira obstetra, vai-se alimentando as bizarrices do pequeno adulto.

Agora multiplique-se por toda uma geração e, pasme-se quem quiser, temos o sucessor do homo sapiens. Um inútil, sem interesse no passado, dependente e sem rumo, criado na ilusão dos novos tempos, em que todos são vencedores e os reis são aqueles com cabelo cor de açafrão ou colorau, maquilhados com filtros virtuais. donos de canais de TikTok e que questionam a utilidade de se ter inventado a gravidade.

Não escrevo mais nada porque ainda me cancelam.

quarta-feira, 26 de novembro de 2025

No fundo do baú 31 - Emanuel Lomelino

Sabes Fernando, tal como tu, eu também tenho uma divergência com o mundo porque o vejo com cores diferentes daquelas que ele diz estar pintado.

Até aceito que digas – Alberto – que o problema está nos meus olhos tristes e cansados, e que os tons pastel que observo são do desapontamento que a vida ostenta como medalhas.

Até admito que tu – Álvaro – por seres mais sábio e avisado nas multiplicidades terrenas, vejas nos meus olhos alguma cegueira febril e impostora, e o mundo continue a ser uma criança inocente.

Até reconheço que tu – Ricardo –, por seres poeta da prudência, tens legitimidade para me acusares de heresia e apontares os pecados que a minha visão perpetua em desfavor da terra que pisamos.

Até estimo que tu – Bernardo – tenhas uma opinião para cada entendimento que pulula a minha mente, e matéria suficiente para escreveres uma tese sobre este desassossego.

Não sei qual dos dois – eu ou o mundo – tem a razão do seu lado, no entanto, os esparsos momentos de observação lerda levam-me a acreditar na impostura luminosa do mundo.

Sabes Fernando, nem tudo o que luz é ouro e o brilho dele – o mundo – é terceirizado e engana.

terça-feira, 25 de novembro de 2025

No fundo do baú 30 - Emanuel Lomelino

Esqueçam tudo o que vos ensinaram sobre a diferença entre os humanos e os outros animais. Por muitas características diferenciadoras que encontrem, há uma que sobressai, mas ninguém a menciona porque nos é desfavorável.

Como tenho uma página inteira para preencher, vou dar algumas pistas antes da grande “revelação”.

Algum de vocês imagina uma leoa decidir, mesmo que apenas por um dia, não caçar?

Algum de vocês concebe a ideia de um salmão recusar nadar contra corrente até ao local de origem?

Algum de vocês consegue vislumbrar uma ave de rapina ignorar uma presa avistada a um quilómetro de distância?

Algum de vocês julga possível uma abelha postergar a recolha de pólen?

Algum de vocês acha viável o cancelamento da migração das orcas, dos gnus, ou dos pelicanos?

Eu podia continuar a fazer questionamentos semelhantes, mas a página está a ficar sem espaço e é chegada a hora de revelar a maior diferença entre humanos e outros animais.

A humanidade é a única espécie que dá uso à preguiça.

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

No fundo do baú 29 - Emanuel Lomelino

Sou tão paradoxo como o Fernando. Só não dei nomes às minhas esquizofrenias, como ele, genialmente, fez, porque decidi assumir os meus delírios de personalidade e concentrá-los num só indivíduo. Assim, só se enferma e destrói um corpo.

Tal como ele – o Fernando – também escrevi sobre tudo e em vários registos, no entanto, heteronimizar os meus devaneios seria demasiado penoso e confuso, pela exigência de criar – além da criação que partilhamos – outros que, sendo eu, não passariam de pedaços minúsculos, pequenos fragmentos residuais, logo, sinopses perfeitas de redundância, e eu prefiro ser personagem ortónimo, por isso único, independente e lacónico.

Neste quesito, sou como o outro Pessoa – o Joaquim – que, quando questionado sobre as razões de, em determinado momento do seu excelso percurso, escrever num estilo e não noutros, respondeu que a sua escrita já tinha passado por todos os registos possíveis e não tinha de provar mais nada.

Adoptei este conceito – do Joaquim - e uso-o para justificar a descontinuidade de alguns temas na minha paleta criativa. Já provei que sei escrever sobre eles, ponto final.

E dou graças aos céus por não ter um heterónimo associado a essas temáticas arquivadas, no tempo que já foi, porque isso implicaria ter de inventar uma morte fictícia para um pleonasmo ambulante irreal.

domingo, 23 de novembro de 2025

No fundo do baú 28 - Emanuel Lomelino

Em certos dias, mais incertos do que a dúvida existencial, derrama-se sobre mim um desejo de não ter necessidade de extravasar, nas palavras que de mim se manifestam, a síntese de tudo o que a minha mente, insaciavelmente, cria e inventa.

No cansaço dos dias modorrentos, e de outros mais fugidios, verte-se sobre mim uma vontade de não precisar juntar verbos aos complementos; sujeitos aos predicados; advérbios às conjunções, que em mim se formam, como hera incómoda e selvagem, e não consigo conter nas margens do anonimato.

Na fadiga das horas morrentes, e outras mais cheias, espalha-se sobre mim uma ânsia de dizimar este imperativo clamor de expelir as histórias que despontam a cada olhar, a cada som, a cada angústia, a cada pensamento, como quem sangra as debilidades do que não controla.

Nesses dias de lassidão e pouca pachorra, inundo-me de repulsa pelo assombro e inconveniência das palavras que germinam em mim e não sei como deixar aprisionadas nas prateleiras do descaso, como quem se renega três vezes diante da morte anunciada.

Na inabilidade de mim, em frustrar a criação, aborta-se sobre os meus ombros a força e querer, de abdicar deste estro que não pedi e alguns juram que tenho.

E tudo isto porque, por mais absurdo que possa soar e parecer, mesmo sendo eu o criador, o que crio não me define e eu não me escrevo.

sábado, 22 de novembro de 2025

No fundo do baú 27 - Emanuel Lomelino

Cada nova alvorada é um renascimento de oportunidades: uma proposta de ar respirável; um atestado de continuidade; uma declaração de intenções; uma moção de confiança; e uma promessa por cumprir.

A cada amanhecer, nasce-me a vontade de roubar a linearidade dos dias e construir outro tempo, menos volúvel e frívolo. Cresce-me o desejo de eliminar as súplicas do corpo cansado, abrir as asas ao horizonte e estender a toalha dos sonhos por concretizar.

A cada aurora, rejuvenesce-me o apetite de seduzir os raios de sol, como quem se prostra à beleza sagrada – porque perfeita – e cegar os caóticos medos que deambulam na mente, transformando-os em memórias esquecidas. Renova-se-me a sede de enfeitiçar o voo das aves, recolher o mel das cores vívidas e abraçar o arco-íris, como quem espanta os males por vir.

A cada madrugada, brota-me, dos olhos, um sorriso de confiança estoica no correto dedilhar de mais um instante de vida. Jorra-me um concerto de esperanças e fantasias por realizar, como estrela que guia os meus passos mais trémulos e imprecisos, rumo ao apogeu de mim.

E nos dias em que não me cumpro, morro-me ao pôr-do-sol.

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

No fundo do baú 26 - Emanuel Lomelino

Paira sobre mim, como auréola cintilante, uma angústia arrítmica que sinto, mas não vejo nem identifico. Sei que acompanha todos os meus passos e preenche todos os meus pensamentos, desde a alvorada bocejante até ao crepúsculo soporífero.

Para agravar a situação, sinto crescer-me nas costas duas asas de preocupação, que não conseguirão levitar-me – inúteis.

Tento decifrar a origem do sentimento para afastar de mim esta permanente vertigem, entre o desconforto e o vazio, que rouba o foco e a energia.

Olho em redor, como quem grita aos ventos pelo consolo de uma resposta que tarda em chegar, e nada vejo que sossegue a ânsia de outros ares, outros espaços, outros tempos.

Nos ouvidos sinto a pressão de um zumbido surdo e vago que inunda a mente de silêncio, como fosse um mar sem ondas nem rebentação.

Para impedir que eu descubra as razões deste incómodo e obrigar-me a voltar ao início de tudo, eis que tenho uma pedra no sapato, e preciso livrar-me dela. Oxalá que ao atirá-la para longe a angústia a acompanhe e, em mim, o alívio tome o seu lugar.

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

No fundo do baú 25 - Emanuel Lomelino

Quando Júpiter, Thor e Zeus fizeram ribombar os céus, todas as divindades decidiram lançar, sobre a Terra, a promiscuidade para que humanos fossem livres como os deuses.

Mas de boas intenções, Plutão, Hades e Hel, estavam cheios, por isso acrescentaram livre-arbítrio à enxurrada divina, na certeza de que isso originaria conflito entre os mundos celestes e terrenos.

Então a humanidade sublevou-se e decidiu fundar outras religiões e dirigir os seus agradecimentos, pelos poderes divinos, aos deuses recém-criados.

Os deuses originais enfureceram-se e formaram o maior exército de bestialidades alguma vez reunido. Ares, Marte e Odin eram os generais e tinham sob o seu comando Cérbero, Kraken e Minotauro, entre outras aberrações divinas.

Mas, com o livre-arbítrio em seu poder, a humanidade, que agora conhecia, de olhos fechados, o poder de Nirvana, nada temeu e tratou da saúde dos deuses, um a um, através de ludíbrio, engodo, embuste e promessa de memória eterna aos titãs Atlas e Prometeu, seus progenitores, Ásia e Oceano, e aos semideuses Hércules, Atena, Apolo, Dionísio, Baco e Perseu.

Muitas foram as maleitas que acometeram os deuses primevos através das doses de humanidade venenosa que lhes foram servidas em cópias de Santo Graal, forjadas pelos Ciclopes enganados por Minerva.

A história é longa e contém muitas outras histórias que não cabem aqui neste espaço. No entanto, deve ser dito que, apesar da artimanha montada, Plutão, Hades e Hel, cujas cabeças foram cortadas, tal como feito com Medusa, não escaparam à astúcia humana e foram substituídos por Lúcifer, o actual senhor das trevas que nos ensombram.

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Epístolas sem retorno 47 - Emanuel Lomelino

Axel Munthe
Imagem retirada da internet

Prezado Axel


Por mais obscura que seja a realidade, o papel do cronista consiste em relatar os factos, tal qual se apresentam, sem ocultar defeitos, erros ou imperfeições. Embelezar acontecimentos e circunstâncias é abraçar a ilusão; o engano; o logro.

Aqueles que decidem cobrir a face do real com a multifuncionalidade das palavras mais não são do que fantasistas; criadores de ficção; vendedores de banha da cobra.

Um cronista, na verdadeira ascensão do termo, tem de ser imune ao desejo que emprestar encanto ao que deve ser entendido, e visto, na plenitude da sua nudez; na totalidade da sua hediondez, por inteiro na sua crueza.

É incoerente querer pintar as palavras de cores quentes e dar-lhes brilho quando, elas, nascem das sombras mais escuras e gélidas. Cada coisa é reflexo do seu entorno e, a bem da verdade, não existe maior falácia no universo das letras do que a maquilhagem.


Empiricamente

Emanuel Lomelino

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Epístolas sem retorno 46 - Emanuel Lomelino

Fernando Pessoa
Imagem pinterest

Prezado Fernando,


Eu, invariável e intransmissível paradoxo de mim mesmo, confesso a opressão que sinto no peito quando cavalgo as searas de calcário multiforme, ou os tapetes de cimento, que me deixam embrenhar nas verdes edificações vegetais desta imensa cidade que, não sendo minha, me pertence.

Sinto-me asfixiado pela grandiosidade desta floresta de pedra, como se a megalómana largueza das avenidas e praças se estreitasse a cada passo dado. Que vício, o deste pequeno país à beira-mar plantado, de deixar ocupar, desproporcionalmente ao seu tamanho, todos os monumentos, antigos e modernos, que não me representando são um pouco a minha imagem.

Sinto-me estrangulado pela altivez dos gigantescos espelhos que refletem a modernidade edificada, como estivesse a ver, nos céus multiplicados, uma encenação da urbanidade liliputiana enquanto espera a chegada prevista de Gulliver.

Sinto-me sufocado pela exuberante beleza das estações que, ciclicamente, cobrem os solos com as tonalidades mais díspares, raras e feiticeiras, permitindo que os faunos esquilos se camuflem aos olhos de quem é, pelos deuses, privilegiado.

Durante anos senti-me tolhido, no pensamento, pela monstruosa desfaçatez do Olimpo, achando que tínhamos sido criados com a presunção de sermos os maiores, com a mania das grandezas, e termos mais olhos que barriga. Mas depois descobri que a própria natureza teve a ciclópica generosidade de nos dotar com esta vontade de querermos ser vistos pelo que fazemos e não pelo tamanho que temos, ao criar o Canhão da Nazaré.


Abismado

Emanuel Lomelino

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

No fundo do baú 24 - Emanuel Lomelino

De que serviria musicar um dia de sol com a alegria a dar ré por ter dó de si e deixar as outras notas no desconforto da solidão à espera de choverem, como se cada instante pertencesse a uma colcheia ou a um compasso, sem que existissem semibreves, pausas ou semínimas.

De que serviria pintar, numa folha de papel, as cores mais brilhantes de um arco-íris, se a paleta dos acasos só tem as tonalidades mais opacas e na palidez de um ápice não existe um pote de ouro, mirra ou incenso.

De que serviria untar as páginas de um caderno com as compotas do dia-a-dia, como quem barra manteiga na torrada, se o sabor de cada momento depende da fome que se tem, e às vezes uma fatia de pão seco é mais saboroso do que o repasto mais elaborado.

De que serviria temperar algumas frases, com as especiarias mais exóticas se a frescura das horas está no sal de uma lágrima, no mel de um sorriso, ou num olhar apimentado.

De que serviria escrever um diário, da forma tradicional que todos fazem, se fazê-lo implicaria dar nomes aos bois, e a outros jumentos, e perpetuá-los na história, enquanto o escrevente nunca alcançará melhor que o anonimato.

Mal por mal, é preferível pegar no absurdo acordeão das metáforas, rufar as gentilezas hiperbolizadas e tilintar os ferrinhos da ironia, porque o “querido diário” não é nada além de uma fanfarra eufemística, sem maestro, que só permite dançar quem saboreia o vinho de boa casta e desconhece a face do mosto, sem data, que lhe deu origem aleatória.

domingo, 16 de novembro de 2025

No fundo do baú 23 - Emanuel Lomelino

Levantou-se um vento autoritário que varre tudo, inclusive a firmeza de ideias, qual censor desgaseificado.

Com a força do seu sopro, voam crenças, fés, certezas e uma ou outra resolução, que nem teve tempo para se vestir de gala porque, quando se perde a convicção, não vale a pena coser o bolso das calças.

Dizem que é tudo alteração climática, mas eu acho que é muito mais que isso. Sinto, na pele, que esta brisa desconfortável – que pica mais do que arame farpado ou agulhas de costureira – é uma onda de ar idiota e destemperado cuja missão é apenas instalar a discórdia.

Noutros tempos, talvez não tão humanos, mas com certeza mais, saudavelmente, filosófica, haveria espaço para debate produtivo sobre a matéria e, entre os vários argumentos, encontraríamos alguma solução pacífica para combater este fenómeno.

No entanto, as sociedades modernas abraçaram o sedentarismo extremo e a preguiça não permite o pensamento livre. Os conceitos válidos são os básicos, que não demandam raciocínio e vigora a lei de quem gritar mais alto tem razão.

O único ponto positivo de tudo isto é que já existem por aí muitos moinhos de vento e a produção de energia eólica pode vir a ficar mais em conta e assim vai ficar mais barato comprar calças e sapatos novos.

sábado, 15 de novembro de 2025

No fundo do baú 22 - Emanuel Lomelino

Já ninguém acode ao “aqui d’el rei” porque quem manda é o umbigo e os aflitos de hoje são mais que as mães.

Já ninguém acredita no “olh’o lobo” porque deixaram de existir cordeiros e todos estão iludidos com a possibilidade de serem predadores.

Já ninguém aceita “descalçar a bota” porque os caminhos são pontiagudos e não há quem se dê ao trabalho de grandes trabalheiras.

Já ninguém quer saber das “pedras no sapato” porque os sapateiros são espécie em vias de extinção e as meias-solas estão fora de moda.

Já ninguém grita “fogo” porque, em vez de bombeiros, os primeiros a chegar são os inúteis alarmes ambulantes pixelizados, que desconhecem a existência de baldes e mangueiras e, tampouco sabem como se abre uma torneira, ou o que é uma boca de incêndio.

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Contos que nada contam 49 (Um dia de Verão) - Emanuel Lomelino

Um dia de Verão


O dia está soalheiro. Apenas alguns flocos de nuvens esbranquiçadas pontilham o céu azul. Num dos bancos do jardim, alguém folheia o jornal como quem não se surpreende com notícia alguma. Ao seu lado, uma senhora tricota, pachorrentamente, talvez um cachecol para o Outono que aí vem, ou uma manta para o rigor do distante Inverno. Mais adiante, na esplanada, fronteira ao quiosque, onde uma miscelânea de transeuntes se reveza num interesse fingido pelas parangonas, vários casais – com e sem crias – degustam lanches rápidos antes de voltarem aos seus afazeres diários. Junto ao lago, onde são inúmeros os jovens que se banham, há uma miríade de sujeitos (homens e mulheres) em trajes formais, com os olhares vidrados em tudo quanto lhes surge nos ecrãs pixelizados, que mantém presos nas mãos, como se a vida dependesse desses apetrechos, enquanto, de uma coluna portátil, em alto e bom som, saem notas distorcidas e vezes estridentes. Adultos, crianças e várias raças de canídeos, em diferentes ritmos e passadas, partilham um espaço relvado mais amplo e sem árvores, ladeados por uma faixa rubra asfaltada onde se mesclam distintos amantes do exercício físico.

No meio desta azáfama, de um dia de Verão, Fulgêncio, vestido com o seu fato de bombeiro, uma mochila de primeiros socorros suspensa nas costas e a transportar, com a ajuda do seu colega, a maca onde colocaram mais um desafortunado morador de rua, que retiraram do edifício devoluto que estava a ser consumido pelas chamas há, pelo menos, duas horas, perante o desinteresse generalizado, questiona-se se tem o poder da invisibilidade ou é apenas mais uma vítima da indiferença reinante.

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

No fundo do baú 21 - Emanuel Lomelino

Não há mal algum em ser-se ambicioso, desde que haja plena consciência das dificuldades e não exista medo de enfrentar qualquer Adamastor que cruze o caminho traçado.

Não há inconveniente algum em ter-se objectivos desde que exista uma vontade férrea e inabalável de ultrapassar todos os obstáculos, por mais árdua que seja a tarefa.

Não há indolência alguma em querer alcançar-se determinadas metas, desde que exista total comprometimento e convicção da utilidade de cada jornada.

Não há arrogância alguma em desejar um aprimoramento pessoal, desde que exista clareza sobre a legitimidade daquilo que se pretende obter.

Só há problema quando não existe tolerância aos pequenos fracassos, boa capacidade de recuperação das inúmeras quedas que sempre acontecem, resistência às dores dos hematomas.

Só há entraves quando não existe ética de trabalho, grau de resiliência necessário para superar a grandeza dos desafios, sobriedade para distinguir as lutas que podem ser travadas.

Só há limites quando não existe espírito de sacrifício, determinação para aceitar os percalços como aprendizado, coragem para transformar as fraquezas em força renovada.

Só há embaraço quando não existe esperança em superar as próprias limitações, coerência nos passos que devem ser dados, humildade para aceitar voltar ao ponto de partida e recomeçar.

quarta-feira, 12 de novembro de 2025

No fundo do baú 20 - Emanuel Lomelino

Tento dedilhar a guitarra da vida, mas os acordes são disformes e não sou capaz de criar uma harmonia que não me fira os ouvidos. Definitivamente não sou músico.

Tento pintar a tela da vida, mas as pinceladas saem irregulares e não consigo acertar nas tonalidades, sombras e brilhos que contrastam com aquilo que quero retratar. Infelizmente não sou pintor.

Tento esculpir o rochedo da vida, mas os vértices que faço ficam rombos a cada passagem do escopro e a burilagem é tão desgastante que apenas consigo gravar migalhas. Compreensivelmente não sou escultor.

Tento refinar os troncos da vida, mas os sulcos que moldo são incompatíveis com os encaixes que modelo e os entalhes ficam tão amorfos que nem as fogueiras os querem como lenha. Miseravelmente não sou marceneiro.

Tento avigorar o ferro da vida, mas não tenho habilidade para dar à forja o calor suficiente para temperar o metal, que quebra na primeira martelada e o pesado malho trilha-me as mãos mais do que me fortalece. Categoricamente não sou ferreiro.

Perante tão humilhante incompetência, conclui-se que é a vida que me dedilha, pinta, esculpe, refina e avigora, e eu sou simplesmente a obra do seu ofício. 

terça-feira, 11 de novembro de 2025

No fundo do baú 19 - Emanuel Lomelino

É tão, absurdamente, fácil ficarmos retidos nos muros das dúvidas e esquecermos os malefícios da inércia quando optamos por encontrar uma estrela guia em vez de desbravarmos as heras que cobrem os caminhos.

É tão, insanamente, fácil ficarmos paralisados diante dos rochedos das incertezas e olvidarmos o propósito que nos devia mover quando decidimos encontrar um trilho que nos leve ao topo do obstáculo em vez de procurar contorná-lo.

É tão, ridiculamente, fácil ficarmos parados defronte do oceano de hesitações e ignorarmos os desígnios que levam a prosseguir quando nos fixamos no medo de afogamento em vez de fabricar o remo que falta à embarcação que nos pode levar à outra margem.

É tão, insensatamente, fácil ficarmos iludidos nos jardins do sedentarismo e alegarmos um propositado embargo à nossa missão quando não temos confiança suficiente na alternativa e fingimos que tudo faz parte do plano.

É tão, humanamente, fácil ficarmos abismados nas florestas de indefinições e perdermos o controlo das prioridades quando desviamos o foco dos nossos intentos e nos deixamos enredar pela desproporcionalidade entre o esforço necessário e o prémio que nos espera no final da jornada.

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

No fundo do baú 18 - Emanuel Lomelino

Sabes Mundo, vive em mim uma empatia pelas lutas que travas na actualidade e revejo-me em muitos dos novos conceitos que agora defendes, porque os considero importantes e revestidos de lógica irrepreensível.

Mas, responde-me Mundo, por que razão a execução das ideias boas vem sempre atrelada a acções que desvirtuam a pureza do que professas? Como justificas a defesa das liberdades com a criação de outros cárceres? Qual a legitimidade de suprimir pensamentos retrógrados com ameaça e perseguição? Em que medida é correcto punir quem deseja validar as filosofias modernas através do diálogo? Porventura, esta atitude de imposição não te faz relembrar os tempos sombrios que viveste? Acaso esqueceste a história que te trouxe até este momento?

Sabes Mundo, um dia inventaste um adágio, mas algures deixaste de acreditar na moral que comporta. E porque “de boas acções está o inferno cheio” acho que decidiste revelar-te como o inferno na terra, em tempo real. É assim tão complicado derrubar muros sem o uso de argumentos e posturas bélicas? É assim tão difícil abdicar de condutas conflituosas? É impossível mudar as coisas sem refregas abertas e permanentes?

Sabes Mundo, por vezes dou por mim a pensar na tendência repetitiva que tens revelado ao ferires-te amiúde, como fosses a definição de masoquismo. O meu temor é que, enveredando por este caminho de trevas constantes, acabes por cogitar a possibilidade de mudares a tua dieta e te tornes autofágico.

domingo, 9 de novembro de 2025

No fundo do baú 17 - Emanuel Lomelino

O mundo desembaraçou-se de absolutismos geográficos, ditaduras físicas e embargos cerebrais em nome da evolução da espécie, no entanto, agora erguem-se muros de intolerância, fronteiras de radicalismo, extremismos de carácter.

Saímos de dois milénios de dogmas e estigmas para mergulharmos numa era de paradigmas irracionais e verdades forjadas apenas porque tudo deve ser desmoronado, mesmo o que deveria estar solidificado.

Mudou-se o cimento autoritário pelo despotismo cimentado. Substituiu-se a imposição da força pela força da imposição. Trocou-se a luta por liberdade pela liberdade de lutar. Alterou-se a defesa de valores pelos valores de ataque.

O mundo transformou-se num gigantesco paradoxo em tão ínfimo espaço de tempo que temo estarmos a caminhar para a loucura coletiva.

Tudo isto faz-me lembrar a história verídica daquele que foi diagnosticado com obsessão compulsiva por, a toda a hora, desinfetar-se da cabeça aos pés. Todos o recriminaram e chamaram de louco, e no momento em que saiu do sanatório, terminado o tratamento forçado e dado como recuperado, o mundo passou a esfregar-se com álcool gel.

sábado, 8 de novembro de 2025

No fundo do baú 16 - Emanuel Lomelino

Odeio que façam algo em meu lugar, tampouco gosto de adjudicar trabalhos a terceiros, porque os “voluntários” e “solícitos” julgam que qualquer uma das situações faz de nós eternos devedores de um favor que nunca foi pedido, e por vezes até já foi pago.

Odeio as frases feitas porque são sinais de alerta para a presença de alguém que nada de novo tem para acrescentar, por preguiça de formular uma opinião própria.

Odeio as conversas de circunstância que só existem para expressar o quão insonsa é a comunicação entre os envolvidos e servem apenas para matar o tempo até que algo interessante aconteça a um dos intervenientes.

Odeio as perguntas que exigem uma resposta monossilábica, porque demonstram o completo desinteresse do questionador sobre o questionado.

Odeio os exaustivos e enfadonhos discursos, multitemáticos, proferidos na sequência de uma pergunta concreta e objectiva, como se a questão fosse abstrata e abrangente.

Odeio a falsa exacerbação dramática e a exaltação excessiva de regozijo, porque ambas padecem de exagero tão desmedido quanto desnecessário.

Odeio os elogios fáceis porque são os mesmos que fazem a outros. O elogio devia ser como um cartão de cidadão ou bilhete de identidade: pessoal e intransmissível.

Odeio tantos outros comportamentos de incoerência, mas não tenho tempo para detalhá-los como estivesse a compilar uma tetralogia sobre gente de múltiplas máscaras.

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

No fundo do baú 15 - Emanuel Lomelino

Lê-se um texto, uma frase, e algo aciona o elo do código genético responsável pela necessidade criativa.

Ouve-se uma sentença, uma palavra, e algo despoleta a vontade de inventar uma história e contá-la como se de uma verdade absoluta se tratasse.

Escuta-se uma música, um som, e algo faz nascer o desejo de dar ritmo metafórico às palavras.

Sente-se o parto de um pensamento, uma ideia, e algo aponta os caminhos a serem trilhados para a parição do texto.

Sempre que acometido por uma destas singularidades, brota de mim a arte mais absurda de sentido.

Sempre que iluminado pelas forças invisíveis do estro, germina de mim o espírito peregrino de uma conjugação verbal.

Sempre que desafiado pela obsessão criativa, floresce de mim a dissertação mais fluída e natural.

Sempre que invadido pelo interruptor do entendimento, jorra de mim o conceito mais aleatório da razão que me alimenta.

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

No fundo do baú 14 - Emanuel Lomelino

Na dúvida do que está por vir e enquanto não surge a certeza do futuro, embrenho-me na escrita, tal qual a penso e sinto, mas sempre na esperança de que cada mote se justifique por si mesmo, sem me explicar.

Não falo de mim nem me denuncio, porque sou abstrato, livre e obcecado pela minha privacidade. Antes crio meadas que teço com os fios velhos que reaproveito. Antes burilo gemas sem brilho que encontro nos troços que percorro. Antes cultivo as sementes do raciocínio, que é comum ao mais comum dos mortais. Antes cinzelo ideias universais com a perícia de quem desconhece tudo, mas suspeita. Antes refino o carvão dos sentidos e dou corpo de diamante às palavras que uso. Antes lavro pensamentos vulgares com fitas coloridas e enfeitadas de verdades.

Depois sou engolido pela noção errada das interpretações que me fazem por ser avaliado pelo que escrevo, como se isso, de alguma forma imperativa, pudesse definir o meu mais recôndito, misterioso e oculto interior.

O homem existe, somente, na intimidade de mim e para conhecimento de quem está próximo. O que está além disso é apenas sombra e o instrumento que dá corpo ao autor.

Esse sim, encontra-se, em toda a plenitude e substância, regido pelo devaneio de dar a conhecer a sua capacidade instintiva de criar a partir do zero. Esse sim, tal qual um heterónimo, merece interpretação, nunca pelo que é, mas pelo que constrói com o estro vulgar que detém e trabalha.