quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Lomelinices 16 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


16


Há um contragosto fatigado e dorido que fere a vontade de mudança rumo ao júbilo.

Existe uma feroz tristeza, que é real e inibe o ambicioso desejo de subir, degrau após degrau, até patamares mais ousados.

Permanece a inoportuna febre que restringe as passadas necessárias para que o arrojo triunfe.

Há um fúnebre cansaço que pesa no corpo como quem proíbe uma progressão legítima e impede o regozijo da glória.

Permanece uma indolente escravidão, sem grilhões, mas bem mais carcerária que as celas de Alcatraz, que dificulta a mais insignificante conquista.

Há uma fragilidade prenhe de restrições que prende os movimentos suaves e singelos, como quem maniata os avanços mais naturais e precisos.

Existe um melancólico acanhamento do ânimo que, pouco a pouco, desfalece por inércia imposta pelas punitivas circunstâncias de todos os dias.

Permanece o insucesso do querer por imposição de um dever odiado, mas crucial para que as metas sejam cruzadas.

Há, existe e permanece um temor ofegante de que todo o esforço despendido seja inócuo e em vão.

terça-feira, 17 de setembro de 2024

Lomelinices 15 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


15


Nasce-se para se morrer, independentemente daquilo que se fizer no intervalo.

Já nasci e morri tantas vezes que a cronologia natural desses feitos deixou de fazer sentido.

Todas as mortes foram diferentes, enquanto os nascimentos foram tremendamente dolorosos para mim, com excepção do primeiro, cujas dores nem recordo.

Nasci e morri de tantas formas distintas que, em algumas delas, senti-me um personagem de Lovecraft.

Foram tantos os partos que nem deu tempo para fazer certidões de nascimento, porque as mortes estavam ao virar da esquina.

Foram tantos os óbitos que nem a necrologia conseguiu acompanhar e ninguém foi notificado.

Morri e renasci tantas vezes que já nem gato sou.

Com tantas parições e falecimentos foi-me permitido confirmar que, por mais que se faça tudo certinho em cada vida, de múltiplas e diferentes formas possíveis, nunca seremos capazes de impedir o desfecho final. E essa circunstância implica que no final das contas, o número de nascimentos será sempre igual ao de mortes.

segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Lomelinices 14 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


14


Não existe falácia na ânsia causada por um silêncio violado pela maliciosa verve, intencionalmente impostora, que fere de garras afiadas os órgãos mais frágeis, como lâmina aquecida a perfurar matéria inflamável.

Não há remorso nas labaredas que beijam os sentidos na esperança de postular uma cauterização lenta até ao cessar dos dias, como a queda num precipício infindo.

Ninguém percebe a vontade intrínseca do sal líquido derramado como consequência do fétido ardor que um verbo pode causar quando penetra o interior imaculado – como floresta virgem - isento de mágoas e nódoas.

Ninguém entende a extensão dos danos perpetrados pela radioatividade das palavras ácidas, propositadamente regurgitadas como cuspidela traiçoeira de um réptil mal-intencionado.

Ninguém compreende o desgosto de um tímpano ferido de inverdades. Há um mórbido desejo de surdez permanente, que é herético, mas apetecido como água fresca em dia desértico.

domingo, 15 de setembro de 2024

Contos que nada contam 24 (A colecionadora de cores) - Emanuel Lomelino

A colecionadora de cores


Quando lhe perguntavam o que queria ser quando fosse grande, Conceição respondia, sem hesitações:


- Colecionadora de cores.


Esta resposta fazia os adultos rirem, mas Conceição não entendia onde estava a graça. Ela falava a sério. Queria mesmo ser colecionadora de cores e não havia no mundo quem fosse capaz de demovê-la de tal propósito.

Ninguém sabe se esses risos impulsionaram o seu desejo, mas a verdade é que hoje todos a conhecem, como Conceição das Cores, e formam enormes filas à entrada de sua casa para verem a maior colecção de cores do mundo.

Diz quem já lá esteve que a colecção é tão vasta e tão completa que, a cada nova cor adquirida, os olhos de Conceição foram-se transformando nos artigos mais raros da colecção e agora são dois enormes arco-íris.

sábado, 14 de setembro de 2024

Lomelinices 13 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


13


Quando os vidros e espelhos se transformam em estilhaços espalhados de modo arbitral no solo roído pelos passos de outrora, não estão sós e isolados. Ficam na companhia da caliça que já foi reboco; de alguns tufos de pelos com proveniência incerta; de heras que se atreveram a romper o betão para despontar entre as frestas de um chão que já foi imaculado; de pedaços de mosaicos quebradiços que a passagem do tempo libertou; de fragmentos de papel retalhado e amarelado pelo mofo; de poeira bafienta originária de múltiplas fontes; de lascas de madeira caídas de armários descoloridos e empenados, cujas portas estão seguras por uma única dobradiça enferrujada; de uma poça de água choca que, volta e meia, é alimentada pela goteira que o telhado esburacado deixou formar, e por onde entram aves para o descanso nocturno ou para se protegerem.

Todo este entulho de ruína e caos é cúmulo de memórias descartáveis que alguém – que pode ser plural – deixou para trás como estivesse a abandonar o mais irrelevante de si.

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Lomelinices 12 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


12


O ritmo, a cadência, a duração dos fragmentos de tempo é igual para todos, sem excepção. Ninguém vive segundos, minutos, horas, dias, semanas com maior duração do que os outros. A diferença está na forma como cada um usa o tempo; no modo como o gasta; na utilidade que lhe dá; no desaproveitamento que lhe faz.

O tempo é um só. Tão regular e contínuo, quanto obstinado e persistente na constância. O tempo é obsessivo, dono do seu nariz, pouco lhe importando a forma, o modo ou o jeito como o preenchem.

A génese das queixas sobre o tempo está no grau de prioridade que cada um, em toda a sua vitimização, dá ao tempo que lhe cabe. Por isso existem os desleixados e os organizados; os irrequietos e os cómodos; os espalhafatosos e os discretos; os inteligentes e os chico-espertos; enfim, aqueles para quem falta tempo e os outros que têm tempo de sobra. Apesar do tempo ser sempre o mesmo.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Lomelinices 11 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


11


Erradamente, supôs-se que a vida seria uma simples equação matemática. Mas alguém, fraco no domínio da álgebra e apenas conhecedor dos números inteiros, enganou-se nos cálculos por não contemplar décimas, fracções, ou raízes quadradas.

Supostamente, a vida deveria ser um segmento de recta. Todos a partirem de um ponto A para chegarem, linearmente, a um ponto B. Mas alguém, fraco em geometria, olvidou a existência de círculos, triângulos, quadrados, etc. Tampouco conhecia ângulos, senos, cossenos, tangentes, catetos e hipotenusas.

Na verdade, de nada nos serve sabermos fazer cálculos avançados ou trigonométricos porque a complexidade da vida ultrapassa todas as ciências.

Para facilitar as coisas, pensemos na vida como uma enorme espiral irregular que contradiz todas as teorias conhecidas.

As contas nunca batem certas, os ângulos estão sempre errados, e as figuras geométricas têm formas difíceis de entender ou identificar.

Bem vistas as coisas, só o ponto de partida A e o ponto de chegada B são os elementos reais da equação da vida, tudo o resto são incógnitas disformes.

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 10 - Emanuel Lomelino

31-08-2024´


Por muito doloroso que seja admitir, não dá para negar que o universo da escrita, deste retângulo à beira-mar confinado, está órfão de valores, tanto literários como humanos.

Todo e qualquer sapateiro de vão-de-escada, com a devida vénia respeitosa aos que ainda exercem essa honrada profissão, autodenomina-se poeta e vive na ilusão de que basta espartilhar frases em versos para que as suas sentenças, vazias de conteúdo, sejam vistas como pérolas de sapiência poética.

Esses cerzidores de adjectivos avulsos fazem-se rodear de eunucos do pensamento, cujas cabeças são de mais fácil penetração por falta de hábito, para não dizer habilidade, em desenvolver raciocínios sem pontas soltas.

Entre os tecelões da preguiça intelectual há meia-dúzia que, imersos numa realidade ficcionada, tendem a abraçar os projectos que mais visibilidade lhes dão, com a mesma intensidade, e intencionalidade, com que mais tarde cospem nos pratos que os alimentam, fazendo-se passar por arautos da cultura (no primeiro caso) e damas ofendidas (no segundo), sempre com espalhafato circense para agregar os clamores dos zombies que cegamente os idolatram.

Por tudo isto prefiro os autores, de uma só cara, que laboram no silêncio das esquinas do olvido. Esses nunca serão lambe-botas nem ingratos.

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Contos que nada contam 23 (A morte do intelectual) - Emanuel Lomelino

A morte do intelectual


Quando a imprensa noticiou a morte de Rodolfo Renan, uma onda de consternação e tristeza espalhou-se por toda a comunidade. Tinha falecido o intelectual mais respeitado e todo o mundo, desde o mais novo ao mais velho, do mais pobre ao mais abastado, sentiu a perda.

Depois, quando foi divulgado que havia sido suicídio, as opiniões começaram a divergir. Uns consideravam, tal facto, como um gesto de coragem. Outros viam como covardia. Durante semanas a fio, houve acesos debates e as coisas chegaram a aquecer de tal forma que ficou impossível não estar num ou noutro lado da contenda.

Curiosamente, no meio de tanta discussão, os motivos que deram origem ao suicídio nunca foram abordados. Só aquando da publicação do testamento é que as pessoas deram conta dessa falha e ganharam consciência de que, durante anos, tinham desfrutado das palavras de Rodolfo Renan sem entenderem que a beleza delas lhes ofuscara o entendimento e não tinham sido capazes de decifrar os seus lamentos, as suas angústias, as suas tristezas, os seus temores. Só aí entenderam que não tinham percebido os gritos de socorro do intelectual.

Todos sentiram que aquela morte, mais do que ter originado a discussão num tema fracturante, teve o condão de alertar para a necessidade de ver-se além da estética, pois nunca se conhece alguém sem saber dos caminhos trilhados.

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Lomelinices 10 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


10


É preciso abrir os olhos, para lá dos limites da fisionomia, para avistarmos tudo aquilo que, pintado com as cores da nossa inocência, nada mais é do que engodo e simulação.

É preciso ver além do alcance da vista para entendermos como estes espectros furtivos, que nos iludem na invisibilidade das intensões, são seres de carácter pérfido, dissimulado, vil.

É preciso atenção microscópica e redobrada para entendermos quão elásticas (como interesseiras) são as aproximações que nos fazem, dependendo da utilidade, ou falta dela, que nos outorgam.   

É preciso dar uso a toda a prudência, que a natureza nos emprestou, para sabermos quando sugam o ar que nos mantém ou sopram o veneno que nos intoxica, como insecticida.

É preciso reparar que, quase sempre, os benefícios de um ombro, que vislumbramos como gesto puro e sincero, são maçãs armadilhadas de gentileza encantatória e enganadora.

É preciso enxergar para lá do horizonte mais próximo e observar a distância mais remota para vermos com clareza o quão camufladas são as pretensões daqueles que, com vozes sussurradas, nos entoam aos ouvidos cantos de sereia.

domingo, 8 de setembro de 2024

Contos que nada contam 22 (A entrevista) - Emanuel Lomelino

A entrevista


- Encontra alguma razão que justifique terem-lhe atribuído este galardão, só agora, numa fase tão adiantada da sua carreira?


Herculano percebeu imediatamente, pelo extenso sorriso estampado nos lábios da jornalista, as intenções da pergunta colocada. Sem pestanejar, retribuiu o sorriso e respondeu:


- Eu poderia alegar vários motivos para esta distinção. Poderia falar em recompensa justa por todo o meu percurso. Poderia dizer que haviam retificado uma longa injustiça. Poderia afirmar que este júri foi menos parcial que os anteriores. Poderia referir que não houve concorrência à altura. Poderia alardear as minhas extraordinárias capacidades criativas. Poderia referir o meu estado de graça. Poderia falar da qualidade do meu trabalho. Poderia revelar conversas de bastidores. Poderia aludir a cunhas ou a aliciamentos. Poderia contar mil e uma histórias só para deleite de todos os telespectadores. No entanto, a verdade só pode ser uma de duas coisas… - fez uma pausa dramática, sentindo que a sua retórica estava a funcionar como previa, aguçando o apetite de escândalo que o rosto da jornalista revelava. – Finalmente, após décadas, consegui escrever um livro realmente bom ou, em contrapartida, e repetindo as suas palavras, quando anunciaram o meu nome, houve um engano. – não conseguiu evitar uma gargalhada perante o ar ofendido da jornalista, ao perceber que tinha caído no engodo. – Sinceramente, estou mais inclinado para aceitar a segunda hipótese. – concluiu triunfante, olhando directamente para a câmara.

sábado, 7 de setembro de 2024

Lomelinices 9 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


9


Quando os pensamentos querem ser vistos transfiro-os para um suporte e visto-os de palavras. Essas dão os braços, umas às outras, como numa roda de dança, e fluem a seu belo prazer sem a minha intervenção.

No início, na inocência do meu desconhecimento, mal se expunham, tentava dar-lhes um sentido mais legível, mas esse processo acabava, inevitavelmente, por lhes cortar o fluxo e, o que era uma ideia sólida, diluía-se no tempo com a busca da alternativa de discurso e perdia a força da mensagem base.

Com o tempo, e a experiência, aprendi a ser paciente e comecei a esperar o fim da transição para depois, então, fazer as alterações necessárias.

É por isso que, mais do que escrever, gosto da transpiração de limar verbos, raspar pontuação, desbastar complementos, cinzelar advérbios, polir sentenças.

E se me perguntarem a razão deste trabalho eu respondo que o meu cérebro é disléxico e tem sempre muita dificuldade em estar sincronizado com os pensamentos que lê.

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Contos que nada contam 21 (Não passa de amanhã) - Emanuel Lomelino

Não passa de amanhã


Serôdio semicerrou as pálpebras numa vã tentativa de enxergar os dois vultos embaciados, que passavam diante de si.


- Tens de ir ao oftalmologista! – aconselhou Beatriz pela milésima vez.


- Um dia destes…


- Respondes sempre isso, mas o dia nunca chega.


- Ando com o tempo ocupado.


- Pois. – disse Beatriz num suspiro de enfado. – Quando cegares de vez, quero ver como vais ocupar o tempo. – sentenciou.


Serôdio sentiu todo o impacto das palavras proferidas pela esposa, mas não retorquiu. Sabia que a preocupação dela era legítima e verdadeira. Nos últimos meses os seus olhos revelavam a extensão do cansaço provocado por anos e anos de esforço a que tinham sido sujeitos. O óculo de relojoeiro ainda conseguia disfarçar a deterioração das duas vistas, mas ler os jornais diariamente, aquilo que mais gostava de fazer quando não estava a arranjar os mecanismos dos relógios, passou a ser uma tarefa árdua. As letras encavalitavam-se umas nas outras e, pouco a pouco, perante as dores que sentia para tentar decifrar o corpo das notícias, Serôdio começou a ler somente os títulos, e depois apenas as letras garrafais das capas. Mas o pior de tudo era quando queria ajudar Beatriz na cozinha. Os olhos já não ajudavam a identificar os frascos dos temperos e, acaso ela não estivesse atenta (às vezes acontecia), lá tinham de comer salada temperada com pimenta branca em vez de sal, ou sopa com vinagre em vez de azeite. Pelo menos por ela, a sua companheira de uma vida, ele tinha de arranjar tempo.


- Não passa de amanhã! – disse ele agarrando a mão de Beatriz.

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Contos que nada contam 20 (O tímido ingrato) - Emanuel Lomelino

O tímido ingrato


Desde muito novo, e apesar de ser visto como o ser humano mais tímido do mundo, Martin granjeou, junto dos habitantes da sua aldeia, a fama de ser perfeccionista em tudo aquilo que fazia. Todos o admiravam e ninguém poupava palavras na hora de elogiar os seus trabalhos.

Na escola, as suas redações eram as que mais fascinavam os colegas e professores, que faziam questão de as lerem em voz alta, algo que ele nunca fazia.

No campo, quando ajudava na sementeira, ou na colheita, e apesar de nunca ter cantado as modinhas com os restantes, a sua dedicação era louvada por todos.

Na oficina de carpintaria, onde iniciou a sua carreira de marceneiro, todas as peças de mobiliário que produzia, mas sem revelar como haviam sido feitas, causavam espanto geral.

Nas festas da aldeia, ninguém dispensava comer as rabanadas confecionadas por ele, cujas receitas nunca revelou.

Foi assim na sua infância, na adolescência, nos primeiros anos da sua vida adulta. Elogios atrás de elogios.

Mas os anos passaram e os seus conterrâneos começaram a ficar aborrecidos com Martin, pela simples razão de nunca terem ouvido, da sua boca, a mais singela retribuição por todo o enaltecimento, aplausos e honrarias que lhe prestavam. Nem um assentimento de cabeça, ou um sorriso agradecido. Todos consideravam essa atitude como sobranceria e falta de humildade. Por isso, um dia, todos deixaram de elogiar Martin.

Esta história podia terminar aqui, mas a verdade é que, no dia da sua morte, toda a aldeia formou uma fila na porta da igreja, para pedir penitência ao padre, depois de ser revelado o segredo mais bem guardado de Martim: ele era surdo-mudo.

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Lomelinices 8 - Emanuel Lomelino

Imagem thestrive

Lomelinices 


8


O dia voou-se-me pelos dedos com a fúria premeditada de lâminas rombas. As mãos choraram desconforto enquanto a alma – essa eterna chaga tresmalhada – regozijou-se por não ser corpórea e celebrou a sua indiferença ao beliscar do físico.

Os segundos latejaram-me na pele; os minutos picaram o ponto; as horas cauterizaram os sulcos, infamemente, enfaixados com gaze inexistente. E ela – a alma arredada de empatia – manteve-se fiel ao seu umbigo narcisista.

A tarde sucedeu à manhã, como é habitual nestas coisas do tempo, e a cada tique-taque da ampulheta moderna mais rugas decidiram enfeitar-me a derme irritada de poeira e sedenta de tréguas. Da outra – a alma desgarrada de afinidades – nem um sopro refrescante de interesse ou sinal de afectação.

Foi apenas mais um dia que passou. O corpo ganhou umas quantas medalhas por continuar a superar etapas, enquanto a alma – vilã de si mesma – permanece na ignorância de que nada, nem ninguém, é imune à passagem do tempo e que este também se lhe aplica.

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Lomelinices 7 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


7


Os dias tecem-se como macramé. Entrelaçam-se os nós à velocidade dos ponteiros, e a estética nunca é ditada pelo tecelão, mas sempre pelos fios do tempo. Os minutos são franjas e as horas urdem-se de forma aleatória, porém harmoniosa.

Hoje teci um dia pardo, entre refeições. Quis Aracne – deusa do ofício –, de porte altivo, como todas as divindades devem apresentar-se, que o padrão das pausas, para descansar as mãos doridas de tantas agulhadas, fosse obtuso, contudo geométrico. E os desenhos de mais um dia ficaram-me tatuados na pele.

A minha sorte é ter esta obsessão redundante pela etimologia das palavras e descobrir que, ao contrário de todos os “dejá vu” deste dia, macramé não tem origem francesa, antes árabe “migramah”, ou talvez do turco (língua aliada) “miskrama”.

Seja como for, assim que a noite se predispuser a embalar-me as escaras, enrolar-me-ei na tecelagem deste dia e dormirei na certeza de que na próxima alvorada serei artesão de outra arte qualquer.

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Contos que nada contam 19 (O evento) - Emanuel Lomelino

O evento


Alcides era um amante das palavras quando, por uma das muitas casualidades da vida, assistiu a uma palestra realizada na sua livraria preferida.

No início, vendo toda a pompa e festança, sentiu-se um peixe fora de água, mas tentou disfarçar esse desconforto e obrigou-se a assistir à totalidade do evento.

O moderador deu as boas-vindas, apresentou os palestrantes e disse que cada um deles era um poço de conhecimento do universo da escrita e, no final, todos os presentes sairiam da livraria mais ricos de sabedoria.

Alcides escutou todos os discursos, em silêncio, como quem assiste a um sermão na missa de domingo, mas o seu âmago estava a ser esmagado pelas palavras que ouvia. A fanfarronice era proporcional à incoerência; o pedantismo vinha abraçado a exageradas doses de bazófia; e o ar estava impregnado de uma altivez elitista que feria todos os sentidos.

Com muito esforço, Alcides conseguiu resistir até ao final do evento. Angustiado, fez uma rápida reflexão sobre tudo o que acabara de ouvir e descobriu que o moderador só tinha dito uma verdade: realmente ele ia sair da livraria mais sábio. Agora compreendia as razões que levaram Pessoa a dizer que os poetas são fingidores, e entendia, finalmente, as palavras de Celso Cordeiro: “para deixar de ser jumento, não basta a um burro saber ler”.

domingo, 1 de setembro de 2024

Lomelinices 6 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


6


Durante anos, por acreditar que a escrita é, mais do que um direito, um dever, e a ninguém deve ser retirada a possibilidade de o fazer, tive dificuldade em entender uma das frases mais icónicas de Saramago, em que ele considerava ser um crime continuar a escrever não havendo mais nada a dizer.

Rebati essa afirmação por ser apologista de que a escrita, independentemente do conteúdo, mesmo vazia e isenta de propósito literário, é um instrumento válido para a literacia e desenvolvimento intelectual das sociedades.

Mas, como muitas vezes acontece na minha vida, só mais tarde, ao ler uma entrevista de Bukowski, onde ele afirma que é preferível não fazer nada do que fazer as coisas mal feitas, explicando que o grau de autoconfiança dos maus autores iguala o grau de incerteza dos bons autores (algo que pude confirmar em diversas ocasiões) e, por esse motivo, os primeiros são mais requisitados para darem palestras, quase sempre enfadonhas como a sua escrita, para plateias compostas, essencialmente, por outros maus autores, esperançosos em serem os próximos palestrantes, é que consegui enxergar a profundidade da sentença no Nobel português.

Nesse momento de epifania, ao entender que ambos os ícones da literatura, embora distintos, tinham a mesma linha de raciocínio - um mais polido (Bukowski) outro mais cru (Saramago) -, passei a acreditar ainda mais que a escrita é um dever de todos, mas isso não significa que todos tenham direito a verem-se escritores.