domingo, 7 de dezembro de 2025

No fundo do baú 41 - Emanuel Lomelino

Pesa-me mais o cansaço dos passos dados em vão do que os quilos de horas que se acumulam nas pernas. Nesses intermináveis momentos de fadiga, o corpo dorido implora pelo mergulho na calmaria do sentir e pede para ser anestesiado por uma qualquer chuva de verão fora de época.

Ofegante é o desejo de permanecer imóvel, sem obrigação de estender os braços aos céus em preces de mudança. Há um pedido mudo que se revela uma necessidade imperativa de ver o voo das pombas brancas, mas o mundo continua a girar inclemente.

O crepúsculo já não é de paz e serenidade porque paira no ar uma cãibra que ignora a urgência de sossego e vazio. As madrugadas são lençóis de lava e as noites prolongam as vigílias inoportunas. O sono é picotado por cada som dos megafones motorizados que fazem derrapagens tão imprudentes quanto estridentes.

Então vem a alvorada com marcas no rosto porque o sol que nasce não é novo, mas sim o pleonasmo do anterior – mais passos em vão e horas acumuladas nas pernas.

Assim passam os dias que enrugam a pele e gritam a monotonia cruel costurada nos caminhos. Uns chamam-lhe destino, outros creem ser fado. Isto é apenas o desassossego da vida e há mortes mais dramáticas.

sábado, 6 de dezembro de 2025

No fundo do baú 40 - Emanuel Lomelino

Quantos degraus devem ser escalados para se atingir o patamar superior?

Quantos obstáculos devem ser ultrapassados para se conquistar a meta?

Quantos tombos devem ser dados para se levantar mais forte?

Quantas traições devem ser sentidas para se provar a lealdade?

Quantas feridas devem ser abertas para se chegar ao limite da dor?

Quantas perguntas devem ser feitas para se alcançar a resposta definitiva?

Quantas derrotas devem ser sofridas para se lograr a vitória final?

Quantas batalhas devem ser travadas para se vencer uma guerra?

Com quantos paus de faz uma canoa?

A resposta a todas estas perguntas é só uma: as que forem necessárias!

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

No fundo do baú 39 - Emanuel Lomelino

A vós, escritores consagrados pelos pensamentos imortais que nos legaram, expresso o meu lamento pelo desleixo daqueles que hoje descredibilizam o raciocínio.

A vós, desafortunados autores com letra maiúscula, declaro o meu desconforto pelo narcisismo daqueles que agora tentam dourar os seus nomes com a fama imediatista, apesar de não passarem de escrivães desalfabetizados e sem noção.

A vós, excelsos literatos que vivestes somente em miséria, manifesto o meu desencanto pelo pedantismo daqueles que vos parafraseiam erradamente para justificar os seus equívocos.

A vós, humildes redatores de sabedoria ancestral, exponho a minha incredulidade pelo enciclopédico desaforo daqueles que nada mais escrevem do que ondas de incoerência e marés de pensamento algum.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

No fundo do baú 38 - Emanuel Lomelino

Não quero louvores porque os epítetos, que outrora significavam admiração e reverência, perderam o fulgor e tornaram-se adjectivos vulgares expelidos com interesses ocultos.

Não quero aplausos porque as salvas, que outrora significavam encanto e respeito, perderam o brilho e tornaram-se estampidos comuns musicados com intensões obscuras.

Não quero premiações porque as medalhas, que outrora significavam reconhecimento e cortesia, perderam o valor e tornaram-se insígnias outorgadas com conotações escarnecidas.

Prefiro as miradas silenciosas porque através dos olhares consigo ver a diferença entre as vénias sinceras e os galardões aparentes.

Prefiro os sinais discretos porque através dos gestos consigo ver a diferença entre as anuências puras e os falsos elogios.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

No fundo do baú 37 - Emanuel Lomelino

Não existem muitos estudos sobre a matéria e quase todos pecam pela escassez informativa, sendo pouco esclarecedores.

Não há consenso quanto à forma de classificar este género de transtorno porque a multiplicidade de sintomas não permite deduzir se estamos perante uma tendência patológica ou uma perturbação mental. Esta dificuldade deve-se ao facto de existirem diferentes graus de manifestação do fenómeno, sempre dependente de cada infectado.

Sabe-se que é um vício. Uma dependência incontrolável que, mesmo detectada precocemente, é difícil de combater porque a ciência, ao contrário do que fez com outras adições, ainda não conseguiu identificar uma origem concreta e universal. Os únicos factos comprovados são que, em nenhuma circunstância, e apesar de ser uma condição pandémica, não há casos de regressão, apenas de progressão, mas não se conhecem casos de mortalidade associada, logo, não tem características malignas.

Assim sendo, não existindo fármacos nem tratamentos paliativos específicos, recomenda-se que todos os adictos diagnosticados prossigam as suas vidas dentro da normalidade que a sua compulsão pela escrita permite, até que se descubra um antídoto.