terça-feira, 22 de outubro de 2024

Ao pé-da-letra 6 - Emanuel Lomelino

Ao pé-da-letra 


6


Normalmente usamos o chavão “a vida é uma selva” para demonstrarmos indignação sobre um episódio qualquer. Mas, se aprofundarmos a ideia, chegamos à conclusão que podemos aplicá-lo a um dia completo. Vejamos:

De manhã cedo saímos para trabalhar e há sempre uma coruja ou um bufo, por trás de cortinas baloiçantes, a ver quem bateu a porta do prédio. Depois surge um babuíno a cravar um cigarro ou um morcego, que retorna à sua gruta, a perguntar as horas. Na fila do autocarro, há sempre papagaios a palrear alto coisas sem noção, e alguns ratos que tentam furar a fila. Durante a viagem, olhando pela janela, vemos imensos burros e camelos a conduzir e que, volta e meia, são ultrapassados por chitas cheias de pressa. No acesso ao metropolitano temos sempre algumas lesmas e preguiças a impedir passagem e há um ou dois hipopótamos com dificuldade em desviar o corpanzil para deixar passar quem quer entrar na carruagem. No interior da composição, já sentadas, vão bastantes pavoas emproadas, com os rostos untados de óleos, pastas, cremes e essências. Aqui e ali avistamos alguns suricatas a esticar o pescoço – ora para a esquerda, ora para a direita – como tentando detectar possíveis predadores. Há muitas hienas de gargalhadas estridentes, mas é só. Nesta arca de Noé sobre carris, também conseguimos ver um número considerável de pinguins vestidos com os seus fatos de gala. Chegados à estação pretendida, todos sobem as escadas como fossem gnus a trepar uma encosta íngreme depois de atravessarem o Nilo infestado de crocodilos.

Durante o dia cruzamo-nos com elefantes trombudos, gazelas esqueléticas e outros herbívoros a pastar nas esplanadas, jumentos de portaria, guaxinins a explorar papeleiras, melgas evangélicas, doninhas fedorentas e, em alguns pontos da cidade, um sem número de espécies exóticas, borboletas, mariposas, traças, que se misturam com formiguinhas autóctones, lebres apressadas e alcateias de lobos desocupados.

Isto para não falar dos escorpiões e lacraus venenosos, serpentes que querem ver alguém morder a maça, anacondas que abraçam em asfixia, aves de rapina a perscrutar as calçadas em busca de presas, e necrófagos a sobrevoar algumas carcaças, que já pereceram, mas não foram avisadas.

Digam lá se a vida diária não é uma selva!

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