sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Lomelinices 27 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


27


Sou tão paradoxo como o Fernando. Só não dei nomes às minhas esquizofrenias, como ele, genialmente, fez, porque decidi assumir os meus delírios de personalidade e concentrá-los num só indivíduo. Assim, só se enferma e destrói um corpo.

Tal como ele – o Fernando – também escrevi sobre tudo e em vários registos, no entanto, heteronimizar os meus devaneios seria demasiado penoso e confuso, pela exigência de criar – além da criação que partilhamos – outros que, sendo eu, não passariam de pedaços minúsculos, pequenos fragmentos residuais, logo, sinopses perfeitas de redundância, e eu prefiro ser personagem ortónimo, por isso único, independente e lacónico.

Neste quesito, sou como o outro Pessoa – o Joaquim – que, quando questionado sobre as razões de, em determinado momento do seu excelso percurso, escrever num estilo e não noutros, respondeu que a sua escrita já tinha passado por todos os registos possíveis e não tinha de provar mais nada.

Adoptei este conceito – do Joaquim - e uso-o para justificar a descontinuidade de alguns temas na minha paleta criativa. Já provei que sei escrever sobre eles, ponto final.

E dou graças aos céus por não ter um heterónimo associado a essas temáticas arquivadas, no tempo que já foi, porque isso implicaria ter de inventar uma morte fictícia para um pleonasmo ambulante irreal.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

Lomelinices 26 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


26


Cada nova alvorada é um renascimento de oportunidades: uma proposta de ar respirável; um atestado de continuidade; uma declaração de intenções; uma moção de confiança; e uma promessa por cumprir.

A cada amanhecer, nasce-me a vontade de roubar a linearidade dos dias e construir outro tempo, menos volúvel e frívolo. Cresce-me o desejo de eliminar as súplicas do corpo cansado, abrir as asas ao horizonte e estender a toalha dos sonhos por concretizar.

A cada aurora, rejuvenesce-me o apetite de seduzir os raios de sol, como quem se prostra à beleza sagrada – porque perfeita – e cegar os caóticos medos que deambulam na mente, transformando-os em memórias esquecidas. Renova-se-me a sede de enfeitiçar o voo das aves, recolher o mel das cores vívidas e abraçar o arco-íris, como quem espanta os males por vir.

A cada madrugada, brota-me, dos olhos, um sorriso de confiança estoica no correto dedilhar de mais um instante de vida. Jorra-me um concerto de esperanças e fantasias por realizar, como estrela que guia os meus passos mais trémulos e imprecisos, rumo ao apogeu de mim.

E nos dias em que não me cumpro, morro-me ao pôr-do-sol.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Lomelinices 25 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


25


Paira sobre mim, como auréola cintilante, uma angústia arrítmica que sinto, mas não vejo nem identifico. Sei que acompanha todos os meus passos e preenche todos os meus pensamentos, desde a alvorada bocejante até ao crepúsculo soporífero.

Para agravar a situação, sinto crescer-me nas costas duas asas de preocupação, que não conseguirão levitar-me – inúteis.

Tento decifrar a origem do sentimento para afastar de mim esta permanente vertigem, entre o desconforto e o vazio, que rouba o foco e a energia.

Olho em redor, como quem grita aos ventos pelo consolo de uma resposta que tarda em chegar, e nada vejo que sossegue a ânsia de outros ares, outros espaços, outros tempos.

Nos ouvidos sinto a pressão de um zumbido surdo e vago que inunda a mente de silêncio, como fosse um mar sem ondas nem rebentação.

Para impedir que eu descubra as razões deste incómodo e obrigar-me a voltar ao início de tudo, eis que tenho uma pedra no sapato, e preciso livrar-me dela. Oxalá que ao atirá-la para longe a angústia a acompanhe e, em mim, o alívio tome o seu lugar.

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Lomelinices 24 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 


24


De que serviria musicar um dia de sol com a alegria a dar ré por ter dó de si e deixar as outras notas no desconforto da solidão à espera de choverem, como se cada instante pertencesse a uma colcheia ou a um compasso, sem que existissem semibreves, pausas ou semínimas.

De que serviria pintar, numa folha de papel, as cores mais brilhantes de um arco-íris, se a paleta dos acasos só tem as tonalidades mais opacas e na palidez de um ápice não existe um pote de ouro, mirra ou incenso.

De que serviria untar as páginas de um caderno com as compotas do dia-a-dia, como quem barra manteiga na torrada, se o sabor de cada momento depende da fome que se tem, e às vezes uma fatia de pão seco é mais saboroso do que o repasto mais elaborado.

De que serviria temperar algumas frases, com as especiarias mais exóticas se a frescura das horas está no sal de uma lágrima, no mel de um sorriso, ou num olhar apimentado.

De que serviria escrever um diário, da forma tradicional que todos fazem, se fazê-lo implicaria dar nomes aos bois, e a outros jumentos, e perpetuá-los na história, enquanto o escrevente nunca alcançará melhor que o anonimato.

Mal por mal, é preferível pegar no absurdo acordeão das metáforas, rufar as gentilezas hiperbolizadas e tilintar os ferrinhos da ironia, porque o “querido diário” não é nada além de uma fanfarra eufemística, sem maestro, que só permite dançar quem saboreia o vinho de boa casta e desconhece a face do mosto, sem data, que lhe deu origem aleatória.