quarta-feira, 30 de abril de 2025

Devaneios sarcásticos 15 - Emanuel Lomelino

Devaneios sarcásticos 


15


Por mais inclusivo e tolerante que se seja aos diferentes pensamentos das múltiplas doutrinas literárias contemporâneas, existem confissões que, ao pregar a boa-nova, espargem paradoxos que só criam raízes nos menos avisados.

Estas facções evangelizadoras da literacia moderna, ao mesmo tempo que se apresentam estratificadas, criam uma auréola classista pela transmissão das suas mensagens

As liturgias são ocas de coerência estilística, não por definição profética propositada, mas por défice cognitivo inerente. Não existe raciocínio lógico fundamentado na solidez de ideias inovadoras, tampouco incentivo ao arrojo.

As eucaristias são cerimónias de pretensão e ufania mascaradas de certame abrangente, não por crença filosófica, antes pelo engodo pastoral dirigido aos devotos.

Os grã-mestres usam o eruditismo e eloquência das palavras frívolas para magnetizar a crendice dos fiéis simples, num catecismo de verdades e presságios que só a eles se aplica.

Por tudo isto louvo, cada vez mais, o meu entendimento agnóstico, que me impede de ingressar nessas seitas.

terça-feira, 29 de abril de 2025

Epístolas sem retorno 30 - Emanuel Lomelino

Paul Celan
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Amigo Paul,


Desconheço se a tua ligação emocional com a morte era mais do que revolta por Auschwitz e, por isso, não sei se este nosso não-tabu pode, de alguma forma, ser comparável.

Apesar da liberdade que me dou ao falar amiúde sobre ela, porque morro constantemente, e ao contrário de ti, não é um fascínio mórbido que me move, mas sim a consciência lúcida de uma inevitabilidade.

Posso dizer-te que, da minha parte, a morte nunca vislumbrará medo nos meus olhos ou coração. Não me intimida pelo breu, pela incerteza do que vem depois, nem pela imagética associada.

Mesmo desconhecendo a forma como a definitiva vai reclamar-me à vida, sei que ela espera por mim e está cada vez mais próxima. E quanto mais o relógio avança menos tempo sobra para falar dela.

Espero apenas que os meus discursos, quase tão negro como os teus, não me levem a um final igual. Neste momento prefiro ser abraçado por ela do que abraçá-la.


Lúcido

Emanuel Lomelino

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 38 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


38


Nestes dias em que acordo com o reverberar da chuva pregado nos ouvidos e inspiro ursos polares, pela única narina desentupida, evito levar os dedos antárticos ao rosto coberto pela inclemência das horas.

Enrosco-me na fogueira de linho e maldigo a vertigem da noite, num gesto de revolta inconsequente que, por si só, aumenta o sufoco de mais um dia de pedras laminadas.

Contragosto, maquilho-me de feliz artífice, de uma arte que abomino, para mascarar o incómodo que o ambiente circundante provoca de véspera.

Nas ruas da cidade já deambulam outras carcaças abatidas pelos ventos gélidos da Fortuna, com as cabeças recolhidas num conformismo nefasto.

Tento alhear-me da lentidão dos ponteiros observando os voos caducos das gaivotas e interrogando-me sobre os guinchos negros dos corvos que fazem malabarismos acrobáticos nos cabos de alta-tensão.

E tudo isto, como uma sessão contínua de mau cinema, repete-se ciclicamente no turno do sol, cujo brilho há muito deixou de animar os meus passos.

domingo, 27 de abril de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 31 - Emanuel Lomelino

30-03-2025


Há uma preocupação legítima com a vulnerabilidade das crianças aos inúmeros aliciamentos feitos online. Faz-se muito ruído, até justificado, pelo desregulamento na protecção dos menores e todos conseguimos identificar os perigos a que estão sujeitos nas redes sociais. Ouvem-se brados de esquerda, protestos de direita. Apontam-se dedos às plataformas digitais, aos políticos, às autoridades judiciais, enfim, responsabiliza-se este mundo e o outro sem, contudo, tocar com o dedo na génese da ferida.

A verdade, por muito dura que soe e por mais que incomode os egos dos libertários modernos, é tão óbvia que chega a ser revoltante. Pelo menos para alguém como eu que, mesmo não advogando pensamentos conservadores, também não fica indiferente à forma como a sociedade aceita e alimenta, de braços abertos e sem contestação, a crescente ausência de valores parentais, como se o papel dos pais se resumisse à concepção e tudo o resto fosse prescindível, porque é mais fácil e cómodo deixar as crianças, entregues à sua sorte, soterradas em aparelhos eletrónicos, do que assumir a responsabilidade genética e moral de as preparar para enfrentar a realidade da vida.

Mas isso, talvez seja pedir demais a pais que desconhecem o que significa ser responsável e nunca viveram dificuldades na vida porque tiveram sempre quem desse o corpo às balas por eles.

sábado, 26 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 37 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


37


Quando, do corpo macerado pelos afagos do tempo, evolam os últimos resquícios de promessas verdes, no recanto mais esconso dos céus nascem nuvens grávidas de dor e lágrimas.

As gaivotas do pensamento, sobressaltadas pela premonição de uma aguda tempestade, guincham maus agoiros enquanto enterram os seus pousos nos grãos de massa cinzenta, como quem procura refúgio em porto seguro.

A chuva empedrada, capaz de romper a macieza do mármore, asfalta a praia da razão com dúvidas e uma película esbranquiçada desregula o raciocínio lógico.

Sem lua nem marés para dominar a intempérie da mente, o eixo do mundo desintegra-se e o corpo fica à deriva, entregue ao capricho da fortuna aleatória.

Resta esperar que alguns raios de lucidez consigam romper a densidade dos cúmulos sujos e iluminar um novo caminho, com menos obstáculos debilitantes.

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 36 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


36


Sempre que mordo as palavras por dizer, falece-me o apetite de ser e fico a mastigar húmus e raízes desidratadas.

A cada frase mal proferida, expira-se-me a resistência à solitude, num abraço autofágico embrulhado em conformismo.

Pereço-me, sobretudo, nos episódios de excessiva sensibilidade autoimposta por altruísmo bacoco.

Desencarno-me a cada oblíqua troca de razões em que predominam lugares-comuns e frases feitas.

Sucumbo-me nas alvoradas indiferentes e nos pretextos crepusculares.

Fino-me na ausência de aceitação aos detalhes básicos em detrimento da grandeza fútil.

Feneço-me pela cegueira táctil à necessidade de eremitismo pontual e meditativo.

Apesar de tudo isto, o silêncio não anuncia a minha morte porque tenho morrido sonoramente vezes sem conta, tantos são os estertores lamentosos como trovões.

quinta-feira, 24 de abril de 2025

Pensamentos literários 22 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 


22


Quando o gerador de palavras fica entupido pelo espírito rebelde da ociosidade, olho para os livros adormecidos nas prateleiras e tento adivinhar o que cada um dos seus autores faria para desimpedir o estro. Então a loucura infiltra-se nos meus neurónios preguiçosos e sai algo como isto:

A filha do capitão (Púchkin), alertada pelo Doutor Jivago (Pasternak), soube que alguns humilhados e ofendidos (Dostoiévski) cheios de orgulho e preconceito (Austen) – os miseráveis (Hugo) -, tal como Ulisses (Joyce), viveram uma odisseia (Homero), numa das viagens à minha terra (Garrett), só comparável à tragédia da Rua das Flores (Eça).

Essa gente singular (Gomes), dotada de um dom casmurro (Assis), alcançou a libertação (Márai) quando a mãe (Gorki) de Síbila (Agustina) os acolheu na loja de antiguidades (Dickens), onde só o sangue cheira a sangue (Ahkmátova) e o mito de Sísifo (Camus) leva a cem anos de solidão (Márquez) numa jangada de pedra (Saramago).

A pérola (Steinbeck) desta história foi a mensagem (Pessoa) encontrada em casa de uma família inglesa (Dinis) onde foi revelada, à dama das Camélias (Dumas), a queda de um anjo (Camilo), em 1984 (Orwell).

A história termina aqui porque Anna Karenina (Tolstói) pôs-se a falar com Madame Bovary (Flaubert) sobre El-Rey Junot (Brandão) e as minhas artérias ficaram desobstruídas.

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 35 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


35


A irregularidade das calçadas condiciona as passadas nos labirintos tricotados pelas sebes e árvores das praças e os bancos de madeira, envelhecida pelos dias, esperam com paciência os leitores de jardim e alimentadores de pombos.

Os pintassilgos sobrevoam a azáfama das formigas ao som do violinista que silencia as ociosas cigarras. Num ramo altivo, berço de densa folhagem alaranjada, dois olhos de esquilo perscrutam os canídeos que passeiam, pelas trelas, os donos hipnotizados pelos pixéis dos ecrãs iluminados.

Nas águas barrentas, dois cisnes flutuam a atenção na família de patolas que se refugiou no centro do lago, fora de alcance do atrevimento de um infante trôpego, incentivado pelos risos histéricos e babados dos progenitores.

E tudo isto é embrulhado por ciclistas, trotineteiros e patinadoras, de calções curtos e justos, que não querem destoar do equilíbrio da paisagem nem diferenciar-se dos caminhantes e corredores de circunstância.

terça-feira, 22 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 34 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


34


Quando o génio entra de férias, supostamente vitalícias, e as incertezas perdem terreno para a indiferença, eis que as adversidades mexem os cordelinhos e encontram sempre uma solução para se fazerem sentir, em todo o fulgor da sua inconveniência ácida.

Quando os caminhos ficam leves e consegue-se percorrê-los em ponto-morto, sem necessidade de gastos extra em esforço e desconforto, e as nuvens parecem querer revelar o brilho azul do céu diurno, eis que o fado arranja sempre um jeito de ser dedilhado tempestuosamente na paleta cinza e íngreme da sorte madrasta.

Quando o sossego é um voo planado, sereno e tranquilo, ao sabor de brisas camaradas, e os horizontes são balsâmicos na sua extensão, eis que Zéfiro acha sempre uma forma linear de boicotar a contemplação mansa das searas e sopra rajadas opacas de vinagre e absinto gelado.

Quando a vida parece lubrificada e tudo corre sobre rodas, eis que as pedras apelam ao deus dos seres inanimados e poluem as engrenagens da esperança, substituindo a mansidão pelo caos, a calmaria pela desconfiança, a paz pela teoria das cordas.

segunda-feira, 21 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 33 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


33


Abençoadas alvoradas, e finais de tarde, em que ofereço a mim próprio alguns momentos de lazer e mato o tempo com estes exercícios de escrita, despretensiosos e sem compromisso.

São instantes que, na minha redoma de silêncio autista, permitem libertar-me dos grilhões de um fado odiado, que me consome e intoxica até ao tutano, e dão-me alento para tentar recuperar a sanidade que me foge todos os dias; a cada segundo, a cada expiração, a cada piscar de olhos.

Por mais absurda e obsessiva que esta rotina possa parecer, embrenhar-me na construção de textos aleatórios e isentos de literariedade é tão regenerador como respirar oxigénio puro para expurgar os venenos ingeridos na poluição dos dias.

Para desgraça já me chega a degeneração física natural da vida.

domingo, 20 de abril de 2025

Pensamentos literários 21 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 


21


Ah, a poesia! Essa meretriz, meiga, terna, despreconceituosa e solícita, que se abre, apaixonadamente, a todo e qualquer entendimento, sem olhar a condições e proveniências, com a necessária dose de lascívia e volúpia para provocar os mais intensos e epifânios orgasmos mentais.

Ah, a poesia! Essa mestre-escola do pensamento universal e multidisciplinar, que filosofa, como um engenhoso e mecânico caleidoscópio holístico, sobre a química geográfica da biologia física (ou transcendente), e arquitecta conceitos éticos e metafísicos para a arte quântica, com precisão matemática, por ser, ela própria, ângulos e vértices da geometria do conhecimento.

Ah, a poesia! Esse paliativo catártico que regula os batimentos cardíacos dos sentidos, eliminando a palidez da existência com as cores mais fulgentes e os brilhos menos ofuscantes.

Ah, a poesia! Esse opiáceo multiforme que, depois de ser injectado nos olhos, corre pelas veias do raciocínio transformando todas as sombras em lucidez vertiginosa e permitindo as viagens mais alucinogénias pelos labirintos da razão, porque tem na sua fórmula estímulos anticoagulantes.

Ah, a poesia! Ah, a poesia!

sábado, 19 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 32 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


32


Deambulando pelos trilhos da irrealidade, onde os céus alaranjados são rasgados pelas asas de criaturas fantásticas, mas nada aladas, as pedras sussurram peregrinações e as flores espirram alergias a cada gota de orvalho.

Os caminhos são percorridos em marcha lenta, quando não em ré, tal como as águas dos rios que fogem das tropelias dos oceanos grávidos e se infiltram nas margens salgadas pelo suor de sargaços em crise de identidade.

As árvores dos pomares têm os ramos entrelaçados e os abelhões de barro esculpem castanhas piladas no coração das trepadeiras para que as formigas de barriga vazia encham o bandulho antes que a orquestra de cigarras, grilos e pirilampos inicie mais uma demonstração psicadélica de artes conjuntas sem fins lucrativos.

Assistindo a toda esta cornucópia de absurdos, como uma criança a olhar um caleidoscópio, está um homem, armado até aos dentes, que se perdeu quando tentava encontrar uma espingardaria para se abastecer de munições a tempo do início da próxima guerra.

sexta-feira, 18 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 31 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


31


Estou cansado das primaveras atrasadas, com flores estéreis e sem cor, espargidas de aromas inodoros. Prescindo dos favos de mel acerados pelas obreiras, sem solas nem décimo terceiro, e dos tijolos de milho prensado pelas ferraduras desenxabidas dos asnos-rei, também conhecidos como vendedores de banha-genérica – porque a banha da cobra já não compensa. 

Não quero mais esperar pelas marés de lua cheia nem pelo rodopio vertical das andorinhas acrobatas, em fins de tarde sem pôr-de-sol. Tampouco me interessam os aprendizes de Fernão Capelo, ou versões “pimba” das fábulas, onde lebres e cágados são personagens isentas de fiabilidade.

Cansei-me de todas as histórias inundadas de lugares-comuns e de oásis com palmeiras virtuosas, dromedários adormecidos, e odaliscas vergadas ao império do silicone. Já não tenho pachorra para evangelizações discursivas e esgotei a paciência nos testemunhos dos criativos de ponto cruz e bombazina.

Até os hálitos de menta e tomilho fumado deixaram de perfumar o ar que respiro, assim que estendi a toalha da fadiga e liguei a ventoinha de incenso.

Abdiquei do estéreo e voltei a mono.

quinta-feira, 17 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 30 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


30


Olho as rugas do espelho e os brilhos solares trespassam a íris cega e irreconhecível, tornando qualquer imagem uma sombra esguia que recusa os holofotes da realidade.

Há minerais baços por detrás de cada bafo gelado e as narinas são crateras que expelem geiseres esquentados na tremedeira involuntária, de um dorso retraído e enrolado sobre si, consequência natural de mais uma morte.

Há um luto dermatológico acompanhado pelas fanfarras, nada jazzísticas, dos acordes doloridos que brotam de cada escara mal cicatrizada. As manchas avermelhadas são mapas temporais dos golpes infligidos ao ritmo da descrença, do desapontamento, do conformismo masoquista e da submissão arbitrária de todos os sentidos.

Não há verde que reanime o âmago nem andorinhas a anunciar uma nova primavera. Há caducidade em todos os poros salinos e um breu que apregoa futuras finitudes.

quarta-feira, 16 de abril de 2025

Contos que nada contam 40 (Cortar o mal pela raiz) - Emanuel Lomelino

Cortar o mal pela raiz


Farto de ser avaliado pelos hipotéticos feitos que lhe eram imputados, por um extenso leque de catedráticos de cortinado (seres alcoviteiros e com pouco sal nas próprias existências), Genuíno apoderou-se das rédeas da vida e deu-lhe outro rumo, sem importar-se com as reacções que essa decisão suscitaria.

Romper com hábitos adquiridos não foi tarefa fácil, no entanto, ele estava disposto a abdicar, mesmo que temporariamente, de situações que lhe eram prazerosas, consciente de que, por vezes, são necessários sacrifícios para se atingir um bem maior.

Embora nunca tenha expressado o sentimento, essa mudança de postura - mais circunspeta, fechado sobre ele mesmo – revelou-se acertada e trouxe-lhe uma paz de espírito inigualável, que passou a ser imprescindível para manter um elevado nível de serenidade e conforto mental.

Hoje, apesar de ter mais dúvidas do que certezas, Genuíno sente-se um homem seguro, com total domínio sobre a sua vida e, acima de tudo, confortável quando tem de cortar algum mal pela raiz.

terça-feira, 15 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 29 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


29


Sempre afirmei que o tempo, aonde existo, nunca me pertenceu. O desenquadramento tem-se avolumado com os anos e o acerto desta percepção tem-se entranhado em mim como uma tatuagem interna que me enfraquece, tal qual uma hemorragia crescente.

A cada tique-taque da minha existência, cai-me sobre os ombros o desfasamento entre o que vivo e o que me foi negado pelos mínimos caprichos de um qualquer deus menor, para seu deleite e minha inevitável sina, como fosse um brinquedo nas mãos de uma criança.

Reconhecer esta condicionante tem-me obrigado a reformular constantemente as minhas prioridades, ao ponto de ter prescindido de algumas convicções, em vez de substituí-las por outras mais adequadas a este tempo e à consciência que tenho dele.

Por não haver retorno, ou segunda chance, quero acreditar que o erro supremo foi concretizado na montagem e que algures, noutro espaço temporal paralelo, está alguém tão desenraizado como eu aqui.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 28 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


28


Definitivamente, não vale a pena entrega total, dedicação absoluta, sacrifícios contínuos nem perseverança.

Mais dia, menos dia, de um momento para o outro, com culpa ou sem ela, há desinflação na utilidade e o interesse esbate-se como tinta gasta pelas agruras das estações.

A memória é frágil, oposta ao impulso, e as cortinas do tempo fecham como se tudo fosse um palco vazio após o último acto de uma qualquer peça de teatro em fim de digressão.

Talvez exista um interruptor para acender e apagar as vontades que se julgavam mútuas e, porque nunca o foram, vida que segue.

As coisas são mesmo assim. Um dia chega a fatura e, das duas uma, paga-se um valor exorbitante pelo simples facto de ser-se ou é-se descartado como farrapos velhos ou embalagens vazias. E não importa reclamar, bater o pé ou contestar. Tudo tem prazo de validade. Inclusive nós.

domingo, 13 de abril de 2025

Devaneios sarcásticos 14 - Emanuel Lomelino

Devaneios sarcásticos 


14


Chegará o dia em que o ritmo cardíaco de um beija-flor será uma lembrança nostálgica de um mundo perdido e seremos acometidos pela saudade dos caleidoscópicos colibris e dos afagos gauleses e atrevidos que depositam em cada flor, em troca de néctar açucarado.

Nesse momento seremos alvejados pelos olhares acusadores dos brincos-de-princesa e estrelícias, como fossemos sinónimo de extermínio e a nossa existência significasse apocalipse.

Confrontados com a impossibilidade de redenção, veremos mariposas desfalecer à nossa passagem, as açucenas e os nenúfares vão murchar e as estrelas apagar-se-ão, como carregássemos uma longa e necrófaga foice.

Então, cabisbaixos e corroídos pelo remorso da indiferença, lançar-nos-emos, dos precipícios mais íngremes, numa espiral de lamentos inócuos e falhos, como se esse acto de contracção nos redimisse do egoísmo com que polvilhámos o solo que nos pariu.

Somos a génese do nosso próprio cataclismo.

sábado, 12 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 27 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


27


Não me impinjam pessoas de utópicas esperanças, grávidas de vertigens fúteis e especializadas em esturjão. Prefiro o cheiro destas páginas – genéricas das tertúlias de Montmartre – que são como geniais pautas de tangos tropeçados nos pátios da Graça, perfumados a arroz de cabidela.

Não me imponham falsas marés de fortuna, com suas ondas de fama adquirida ao preço de vénias heréticas. Prefiro o anonimato sombrio destas salas de papel reciclado, que pululam nas inúmeras Varsóvias lusas que tresandam a tabaco contrabandeado.

Não me poluam com essas histórias imberbes sobre a importância dos lugares-comuns e dos matizes de um arco-íris furtuito. Prefiro a policromia cega da consciência popular que se traduz no linguajar das guitarras harmónicas que decoram as tasquinhas e pedem cálices de ginjinha e sangria.

Não me peçam para ser contranatura e renegar José Régio. A ironia cansada dos meus olhos arrasta-me, com meu consentimento, pelos loucos caminhos da individualidade. E sigo, passo a passo, com o bolso carregado de verdades minhas e algumas de Botto, O’Neill, Ary e Ruy Belo.

sexta-feira, 11 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 26 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


26


Acordo com a melodia cadenciada de chuva tocada a vento, que beija a janela do quarto. Recolho-me no conforto quente dos lençóis de linho e sinto a frescura gélida da mão esquerda que havia-se rebelado, pernoitando no lado externo do edredão. Recuso olhar o relógio.

Oiço o som inconfundível de borracha a deslizar na água, deduzo a passagem de um carro elétrico e a quantidade de precipitação acumulada na estrada. A iluminação da rua permite-me ver a sombra dos ramos, da Tília-de-folhas-grandes ainda despida pelas estações, e a corrida irregular das gotículas que deslizam na janela. Recuso olhar o relógio.

Os sons invernais recuam-me os pensamentos até ao início da adolescência, cerro os olhos, enrolo-me nas dores de meio século, e deixo-me cair num sono modorrento e nostálgico.

Mais um carro que passa. E outro. E outro. E a estridência do despertador mata-me a inocência de um sonho breve, retornando-me à realidade de mais um dia de tormenta – não só climatérica – porque a poesia é fado e infortúnio.

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 25 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


25


O discernimento vem com a idade e é nesse momento que as epifanias brotam como água em fonte inesgotável.

O trigo já aparece separado do joio; os coxos são mais esguios do que os trapaceiros; as duas faces das moedas são indisfarçavelmente distintas; todos os bois, além de nome próprio, também têm apelido, proveniência e intenções patenteadas; as utopias e os dogmas perdem importância; as sombras esbatem-se; os brilhos deixam de ofuscar; a lucidez é rainha; o medo é bobo; a vida é um fiapo de tempo; a morte é uma inevitabilidade e continua a ser um mistério.

Mas toda esta perspicácia às vezes fere. É uma quase automutilação. Vil, sanguessuga, vampiresca, medonha, assustadora. E dá vontade de saber menos do que na adolescência, ser inconsequente, inanimado, como uma página ingenuamente branca.

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 24 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


24


Arrasto-me pelos dias, cada vez mais sombrios, com um saco de incómodos às costas, um cigarro mal prensado nos lábios, e os olhos cegos ao desconforto.

Com os pés treinados nas caminhadas sem rumo, testo a firmeza das cordas bambas, prescindindo de artes circenses para encontrar equilíbrio e estabilidade. Basta-me olhar o vazio para que os passos soem a trotes melodiosos sem lugar a sinfonias orquestradas.

Subo escadas intermináveis pousando apenas os calcanhares para não acordar os calos do dedão, enquanto mantenho as mãos ocupadas a transportar os bisturis que me laceram, como finalistas a praxar caloiros.

Depois, fico horas a deambular entre o conformismo idiota e a revolta silenciosa, como estivesse a preencher puzzles de Sudoku, só para passar o tempo até chegar a altura de recolher-me e purificar-me nas palavras – a única droga que consegue anestesiar-me o âmago.

terça-feira, 8 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 23 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


23


Este sentimento de desadaptação está costurado no meu âmago desde sempre. Lembro-me de, em criança, muito pequeno ainda, sentir-me deslocado no tempo, como se a cegonha tivesse ficado retida num engarrafamento de décadas provocado por uma paralisação dos serviços administrativos aéreos da Natalidade.

Esse atraso na entrega fez com que eu só visse a luz do dia bem mais tarde do que seria suposto. Pelo menos, valha-nos isso, o tempo de traslado é independente do de gestação, caso contrário eu teria nascido mais velho do que a Sé de Braga.

Tirando esse detalhe do desacerto temporal, não tenho mais nada a colocar no livro de reclamações. Os movimentos de rotação e translação dão-me os dias, as noites e as estações. A gravidade não me deixa flutuar – isso é óptimo para quem tem vertigens -, o céu varia entre o azul e os tons cinzentos, o mar anda entretido com os seus humores e marés, tanto a fauna como a flora são incríveis. Enfim, é tudo tão perfeito que a única coisa que posso reclamar da vida é estar aqui no tempo errado.

segunda-feira, 7 de abril de 2025

Epístolas sem retorno 29 - Emanuel Lomelino

Edgar Allan Poe
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Caro Edgar,


As gárgulas, empoleiradas no negrume dos telhados, choram lágrimas de pó quando atestam, com notório desgosto nas faces grotescas, a perversa iniquidade dos, autodenominados, vates modernos.

Há, nas suas bizarras feições, untadas de raiva incontida, laivos de tristeza pagã e réstias de soturnidade, que resultam dessa fanfarronice egocêntrica que, sabe-se lá por quê e em nome de quem, é característica indissociável dos neo-versejadores.

Longe vão os tempos em que as palradoras estátuas de pedra rejubilavam com as góticas criações dos nobres e genuínos artesãos das palavras. Hoje, por mais esforços hercúleos que façam, dificilmente encontram diversidade na coloração das chamas, porque tudo é azul-propano como esta metáfora imperfeita.


Sombrio

Emanuel Lomelino

domingo, 6 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 22 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


22


Por vezes o fogo da vontade perde vigor e transforma-se numa ténue faúlha, que só não se extingue porque nos momentos de alento invertido, sobram ligeiras ondas de resiliência que, embora em banho-maria, impedem que o sentir seja obliterado por uma brisa de fraqueza.

Tal como os arco-íris, os ápices débeis da mente são miragens que tentam grudar-se ao céu do raciocínio, na esperança de ganhar protagonismo, como fossem autores de lavras plagiadas, a desfilar nas sombras de falsas passadeiras vermelhas, sem holofotes nem comendas.

Esses instantes frágeis, quando bem identificados, são manuais empíricos, do lado negro do ser, que ajudam na compreensão dos extremos da personalidade.

Cabe a cada um dar uma utilidade holística, ou parcial, ao aprendido – quando munidos de capacidade reflexiva e isenção de preguiça.

sábado, 5 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 21 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


21


Há um abismo, criado propositadamente, que dificulta o acesso ao mais íntimo de mim, porque só a mim pertenço, só a mim me justifico, só a mim me cumpro.

Por muito que deduzam pedantismo, tomara cada um ver-se o centro do universo, qual astro com órbita personalizada, e poder acionar ou desligar, dependendo do sentir, a força gravitacional que permite a aproximação de outros corpos celestes.

Muitos usam expediente semelhante, no entanto, sempre subjugados ao engrandecimento material que os “atraídos” proporcionam.

O meu egocentrismo, consciente, é espiritual, intimista, irreversível, meu. A mais ninguém pertence, a mais ninguém é útil, a mais ninguém enriquece.

E, pasmem-se os desavisados, esta convicção prática jamais foi impeditiva dos meus contínuos altruísmos, dos quais tampouco alardeio ao mundo. Quem vê, sabe. Quem desconhece, ignora. E convivo bem com ambos os espectros, porque só a mim cativo.