domingo, 6 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 22 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


22


Por vezes o fogo da vontade perde vigor e transforma-se numa ténue faúlha, que só não se extingue porque nos momentos de alento invertido, sobram ligeiras ondas de resiliência que, embora em banho-maria, impedem que o sentir seja obliterado por uma brisa de fraqueza.

Tal como os arco-íris, os ápices débeis da mente são miragens que tentam grudar-se ao céu do raciocínio, na esperança de ganhar protagonismo, como fossem autores de lavras plagiadas, a desfilar nas sombras de falsas passadeiras vermelhas, sem holofotes nem comendas.

Esses instantes frágeis, quando bem identificados, são manuais empíricos, do lado negro do ser, que ajudam na compreensão dos extremos da personalidade.

Cabe a cada um dar uma utilidade holística, ou parcial, ao aprendido – quando munidos de capacidade reflexiva e isenção de preguiça.

sábado, 5 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 21 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


21


Há um abismo, criado propositadamente, que dificulta o acesso ao mais íntimo de mim, porque só a mim pertenço, só a mim me justifico, só a mim me cumpro.

Por muito que deduzam pedantismo, tomara cada um ver-se o centro do universo, qual astro com órbita personalizada, e poder acionar ou desligar, dependendo do sentir, a força gravitacional que permite a aproximação de outros corpos celestes.

Muitos usam expediente semelhante, no entanto, sempre subjugados ao engrandecimento material que os “atraídos” proporcionam.

O meu egocentrismo, consciente, é espiritual, intimista, irreversível, meu. A mais ninguém pertence, a mais ninguém é útil, a mais ninguém enriquece.

E, pasmem-se os desavisados, esta convicção prática jamais foi impeditiva dos meus contínuos altruísmos, dos quais tampouco alardeio ao mundo. Quem vê, sabe. Quem desconhece, ignora. E convivo bem com ambos os espectros, porque só a mim cativo.

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 20 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


20


Sinto que estou a derramar-me até ao extremo do vazio; até ao limite da sensibilidade; até à falésia da consciência, qual abundante cascata de coisa alguma.

Nestes dias em que liquidifico a minha existência deixo de ser corpóreo, liberto-me das emoções, abraço a vacuidade profunda e agrilheto os pensamentos no mais esconso subterrâneo.

Embrulho-me na agudeza protetora e segura do silêncio absoluto e deixo o meu espírito vazado deambular pela neutralidade do espaço.

Somente o nada consegue ser, em mim, o equilíbrio, a prudência, a sensatez, a razão, o tão desejado porto de abrigo.

quinta-feira, 3 de abril de 2025

Epístolas sem retorno 28 - Emanuel Lomelino

David Attenborough
Imagem redbubble

Prezado David


Há uma heterodoxia evidente no silvo melífluo da brisa que beija as folhas de uma árvore. É um ciciar da natureza; um aviso intimista, mas tão expressivo quanto os brados das ondas que esculpem os maciços rochosos. Contudo, mantemo-nos indiferentes.

Existe um discurso, nas vozes das tempestades, que passa despercebido a olho nu. É um código do ambiente; um sinal de alerta, tão dual como o ressonar de um vulcão adormecido na antecâmara do seu estrondoso despertar. Contudo, mantemo-nos apáticos.

Há uma oscilação atmosférica em todas as épocas como um entrelaçar festivo de quadras temporais. É um sussurro climático; uma advertência tão cadenciada quanto o degelo dos mais primitivos glaciares. Contudo, mantemo-nos passivos.

Existe um tempo que se esgota como uma ampulheta quebrada. É a noção de perenidade a extinguir-se como o Cretáceo. Contudo, mantemo-nos impávidos porque essas coisas só acontecem aos outros. Quais outros?


Apreensivo

Emanuel Lomelino

quarta-feira, 2 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 19 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


19


A turbulência dos dias não quer saber se o arco-íris é filho do sol e da chuva ou reflexo da cúpula que dá razão aos esfomeados terraplanistas.

De leste chegam uivos ogivados rugidos por gargantas mais inocentes do que gárgulas esquimós, enquanto, daquela janela aberta para o Tejo, ecoa uma voz de barítono com hálito de açorda e chamuça.

Nos carris do elétrico, encerados pela morrinha recente, deslizam saltos altos, “raios partam” e outros impropérios indiferentes às moedas, largadas à laia de piedade, no boné do humorado maltrapilho, que tem banca permanente no adro da igreja e um cartaz a informar: multibanco avariado.

Na porta da tasca sorvem-se ginjinhas espirituosas e lançam-se olhares – cada um com o seu significado – para os “camones” na esplanada e aos que passam, de mochilas às costas e ansiosos por fotografar os azulejos quebrados das fachadas devolutas.

O céu anuncia o anoitecer precoce de mais um domingo e não há tempo a perder com notícias de Gaza ou Kiev porque é dia de clássico na tv e expulsão num reality show.