quarta-feira, 1 de maio de 2024

Diário do absurdo e aleatório 295 - Emanuel Lomelino

Ercília, sentada no seu banco de jardim favorito, interrompeu a leitura, do livro acabado de comprar na feirinha de antiguidades, para observar o jardineiro que parecia estar a conversar com as flores-de-alfazema.

Tal como ela, todos os que ali se encontravam cessaram os seus afazeres para presenciar a cena, que nada teria de inusitado se não fosse de conhecimento público, pelo menos de quem frequentava com regularidade aquele espaço de lazer e descontração, que o jardineiro era surdo-mudo.

Para Ercília, o mais inquietante daquela situação era o facto de, apesar do mutismo claro e evidente, ser invadida pela sensação de estar a presenciar um diálogo definitivo, tamanha a solenidade transmitida pelo olhar irrequieto do jardineiro e pelos movimentos lentos, mas incisivos, que ele fazia com as mãos, como quem revela uma confidência e espera compreensão.

Por breves instantes, os olhos lacrimosos do jardineiro cruzaram os seus e Ercília sentiu um ligeiro desconforto, como tivesse sido apanhada a escutar atrás de uma porta.

Nunca ninguém se deu ao trabalho de associar uma coisa à outra, mas a verdade é que aquele era o último dia de trabalho do jardineiro, antes de aposentar-se.

terça-feira, 30 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 294 - Emanuel Lomelino

Por mais incompreensível que possa parecer, todos os silêncios têm um discurso acoplado e as asas das borboletas ficam mais fortes a cada batimento.

Nem todas as percepções correspondem à verdade dos factos e os hologramas, antes de serem avanço tecnológico, já faziam parte da vertente ficcional das prosas enxeridas e abelhudas.

Não esqueçamos que as pedras podem virar pó e este transforma-se em barro ou lama, dependendo da quantidade de água derramada.

Depois temos o vento que, num ápice reptílico, passa da carícia ao empurrão e tanto pode acelerar o passo como soprar contracorrente.

E santos são os caules espinhosos das rosas e os ferrões das vespas, menos perigosos do que os lábios famintos de qualquer drosera.

E tantas outras metáforas poderiam ser usadas para referir que há demasiada gente dissimulada e adepta da má-língua, da bisbilhotice, da difamação, da intriga e do falso-testemunho.

segunda-feira, 29 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 293 - Emanuel Lomelino

- Ó padre Frederico! Perdoe-me a franqueza, mas às vezes fico a pensar que o doutoramento em teologia ajuda-o a salvar almas, mas nunca o preparou para identificá-las.

- Porque dizes isso, meu filho?

- Então, ao fim de vinte cinco anos é que você deu conta que o Peliça era um falso sem-abrigo afogado em dinheiro? Acaso pensou que a alcunha que lhe demos tinha outra conotação?

- Ele sempre me pareceu tão maltrapilho como os restantes. Nunca vi nada que o diferenciasse, à parte de estar sempre disponível para ajudar nos eventos sociais da paróquia. Quanto à alcunha… pensei que fosse por ele estar sempre de luvas e vocês apenas estivessem no chiste.

- Haja ingenuidade, padre Frederico! Desde quando é que um sem-abrigo anda de luvas cirúrgicas, com a barba aparada e sem sarro no rosto?

- Pois…

- Bem, ingenuidades à parte, o importante é preservar a memória do Peliça, como todos o conheceram, pelo tanto que ele fez aqui, e nos termos que ele deixou em testamento. Como beneficiários, temos a obrigação moral de retribuir o altruísmo e a generosidade destes vinte cinco anos. Ninguém fez tanto por esta comunidade quanto ele. Tampouco de forma anónima e despretensiosa.

- Paz à sua alma!

domingo, 28 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 292 - Emanuel Lomelino

Reconheço a precaridade dos meus passos e as responsabilidades alheias que coloquei nas costas quando, eu próprio, sentia a necessidade de outras latitudes, outros encargos, mais sensatez.

Porventura, deixei-me ficar no lado de cá do horizonte por achar que escalar outros cumes seria um acto de egoísmo descabido e só conheci a indiferença depois de muitos sapatos gastos.

O discernimento conquista-se a conta-gotas e a consciência precisa ser destilada para que a razão venha à tona. Por isso, só agora, passado o equador da viagem, é que dei conta do caminho circular – para não dizer espiral – que tenho trilhado.

Arrependimentos! Na prática nenhum porque, instintivamente, nunca fui acumulador de tralhas e abandonei algum lastro basáltico nas margens do esquecimento. Mas não se aflijam os ambientalistas porque deixei tudo bem acondicionado em embalagens recicladas e nos respectivos aterros.

sábado, 27 de abril de 2024

Diário do absurdo e aleatório 291 - Emanuel Lomelino

Quisera ser tempestade ribombante para, com a luminosidade dos raios e rouquidão dos trovões, atormentar as dualidades das marés lunares.

Quisera ser vulcão e cuspir rios de lava abrasadora sobre as vulnerabilidades infundadas que, quais etiquetas inamovíveis, falsamente denigrem o carácter mais brando e casto.

Quisera ter a acidez vernácula para combater a violência covarde de quem se esconde nas sombras do anonimato e depois passeia, altivo e de saltos altos, nas vergonhosas passadeiras vermelhas do engodo.

Quisera ter todos os verbos à flor da pele para, com a língua afiada, romper a brandura dos discursos, chamar os bois pelos nomes e colocar os pontos nos “is”.