quinta-feira, 15 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 45 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


45


Tudo começou com o trovejar dos bombos seguido de um choro colectivo dos violinos, primeiro sussurrado, depois bradado. Só depois o clarinete buzinou uma passagem de nível e as colinas deixaram-se florir numa sinfonia de cores exóticas.

Houve uma vertigem zumbida que polinizou um dente-de-leão e as glicínias olharam o céu em prece pedindo, aos deuses florais, permissão para o regresso dos colibris.

A mariposa sacudiu a transparência das asas para receber a simpatia da brisa e serpentear entre as peónias bailarinas.

As campainhas tocaram triângulos a compasso e o salgueiro-chorão aproximou-se do rio para ver, mais próximo, a família de carpas-dragão que manchava a serenidade cristalina das águas.

O pica-pau trauteou morse no tronco rijo de uma laranjeira e a orquestra edílica deu lugar ao silêncio absoluto porque apareceu uma mochila a empurrar um ser bípede que estava noutra sintonia e decapitava margaridas.

quarta-feira, 14 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 44 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


44


Sim, aos poucos têm-se evaporado os nenúfares e pintarroxos da criação para darem espaço aos gumes afiados das pedras enegrecidas pelas vaidosas fogueiras, alimentadas de toros vulgares, que pululam neste novo desenho de intenções.

Mergulha-se a autonomia expressiva dos voos livres nas masmorras do convencional e os arco-íris são engavetados nas sombras dos profetas eleitos pela unanimidade da preguiça, que graça nos bustos esculpidos pela ignorância.

Assim perecem os fios do irrepetível e nasce a pura absolvição dos espelhos, para contentamento dos usurpadores de ideias que usam sapatos largos e luzes ofuscantes.

Este é um tempo raso que flui, na precipitação do seu descaso enraizado, como um rio daninho que oferece lodo às margens e ceifa, dos salgueiros, a seiva que não precisa nem merece.

terça-feira, 13 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 43 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 


43


Juro que tento ressuscitar em algumas mortes, mas é difícil devolver a vida a raízes que passaram por impiedosa trituração.

Deixou de haver remédio para colmatar o desconforto provocado pelos engodos permanentes e intencionais. Já não existe antídoto para os embustes perversos. Tampouco há milagre que inverta a falsidade hipocondríaca.

As compressões no peito já não desobstruem os incómodos pérfidos originados pelas frases feitas, lugares-comuns e puxões de tapete.

Nem a manobra de Heimlich consegue desengasgar-me as goelas dos sapos, viscosos e intragáveis, que tentei engolir na crença esperançosa de novos horizontes.

Assim, por razão de sanidade mental e para evitar a putrefação de todos os sentidos, deixei de perder tempo em reanimações e sou mais célere na confirmação dos óbitos em mim.

segunda-feira, 12 de maio de 2025

Pensamentos literários 25 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 


25


As dores deixaram de ser passageiras e as sílabas tónicas jamais serão analgésicos para a contemporaneidade.

Por mais pensadas que sejam as frases, a criatividade é um ente falecido por excesso de penas ocas.

Há um movimento de passadeira boémia tão ébrio quanto uma reunião de enólogos descredibilizados e os rótulos estão fora de validade para safras novas.

A mesmice é uma obstinação desta época, sem contrastes, como fosse sinónimo de capricho bafiento.

Há uma tendência autofágica que amputa o simples porque as manchetes da moda requerem odes à vulgaridade.

Valha-nos o santo papel reciclado.

domingo, 11 de maio de 2025

Devaneios sarcásticos 16 - Emanuel Lomelino

Devaneios sarcásticos 


16


Na penumbra dos becos, os tijolos quebrados são testemunhas assíduas das vidas que se cruzam, entre pestilências, azares e necessidades, regadas a vícios e adições.

Abrem-se pernas e goelas ébrias, em rituais de praxe mundana, enquanto roedores e varejeiras, alheios aos marujos caídos e carochos ressacados, procuram as águas-furtadas de um contentor chamariz.

As sombras são armários onde os cobardes aconchegam as vertigens, os corcundas ganham linearidade, as pegas aliciam sob pressão de lâminas e chumbo, e os vasilhames dividem espaço com latex e filtros alcatroados.

No aconchego da escuridão noturna, os corretores de fumo e caldo especulam piercings, ao ritmo dos batuques abafados que saem das caves guardadas por adoradores de halteres.

Há um gato que mia, um caixote remexido, um pneu que derrapa, um copo que se estilhaça, um isqueiro que é acendido, um rosto que se ilumina, uma baforada que se cheira, um tumulto que se gera, um grito que se escuta, um vulto que tomba, uma poça que se forma, passos que fogem e o silêncio cúmplice que nada viu ou ouviu.